“Tu,
Senhor, és o nosso Pai” (Is. 63:16).
“…
Senhor mostra-nos o Pai, o que nos basta.
Disse-lhe Jesus: …Quem me vê a mim vê o Pai…” (Jo. 14: 8-9).
“Eu
sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim. Se vós
me conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai; e já desde agora o
conheceis, e o tendes visto” (Jo. 14:6-7).
Introdução
Há muito tempo Deus deixara transparecer
a Sua paternidade: no mundo que Ele criou e que mantém na existência; em
Israel, que Ele guiou como pastor – o bom pastor não é como pai para o rebanho?
Esta revelação desconcertante de que “Deus
é Pai”, martelando dentro de mim, levou-me a consultar o grande manual do
fabricante, a Bíblia Sagrada. No Antigo Testamento, de Génesis a Malaquias,
pelo menos uma dúzia de vezes o Deus de infinita majestade que apareceu no
Sinai é tratado como pai, mas apenas uma vez, fica claro o relacionamento de
paternidade, quando Isaías, no capítulo 63, verso 16, diz: “Mas tu és nosso Pai, ainda que Abraão não
nos conhece e Israel não nos reconhece; tu Senhor, és nosso Pai; nosso Redentor
é o teu nome desde a antiguidade”. Ou Deus tratando a relação Pai e Filho
apenas no livro de Salmos 2, verso 7: “Proclamarei
o decreto do Senhor: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei”. Fica
claro que a Palavra de Deus fala acerca de Jesus, no contexto do capítulo.
O profeta Isaías, depois do exílio da
Babilónia, conhece a crise de identidade de seu povo, e um povo que vive sem
Deus, procurando simplesmente sobreviver, não tem perspectiva de futuro, porque
perdeu a esperança. Colocando-se no lugar dos simples, o profeta nos oferece
uma verdadeira profissão de fé, sobre quem é Deus: “Tu Senhor, és o nosso Pai, nosso redentor: tal é teu nome desde a
antiguidade. Por que fazes com que nos desviemos dos teus caminhos? Volta, por
amor dos teus servos... Oxalá fendesses o céu e descesses... Tu és o nosso pai,
nós somos a argila e tu és o nosso oleiro, todos nós somos obra de tuas mãos”
Is 63:16-17; 64:1, 8).
É um dos poucos textos do Antigo
Testamento que usa esta expressão para falar de Deus como “Pai do povo”.
Enquanto nas outras religiões os deuses mostram-se vingativos o Deus de Isaías
tem entranhas de misericórdia e age como um Pai e redentor e considera todos
aqueles que se chegam a Ele como seus filhos ou revela-se como um paciente
ceramista, um oleiro que sempre sabe criar algo novo para os seus. De agora em
diante tendo a Deus como Pai e redentor, nem importa mais sentir-se como o
barro nas mãos do ceramista, porque de suas mãos sempre sai um vaso novo. Cada
dia devemos pedir ao Senhor que venha a nós, nos restaure e faça de nós um vaso
novo e nos possa encher até transbordar.
Quando Jesus nasceu, Deus já era Pai de
um povo que preparava a sua vinda. Foi para este povo que Deus primeiro se
revelou pelos profetas (Hb.1:1), e falou de muitas maneiras, porém, sempre com
a mesma intenção: Revelar a Sua vontade para o bem de seus filhos. Ele é um
Deus que fala, testemunham os primeiros versículos da Bíblia. Toda a vez que Ele
fala, a Sua palavra produz efeito, gera um ser. Desde o início, a Sua palavra é
um anúncio da encarnação do Verbo. Ela já traz as características de pessoa e
delineia a sua geração. A fala de Deus é sinal de sua reciprocidade para com o
povo de Israel, reciprocidade antes exercida na relação com o Filho na
eternidade. Essa proximidade se estreita quando Ele estabelece uma aliança com
esse povo, prefigurando a sua proximidade total na nova aliança. Em todos esses
momentos Deus fala em linguagem humana para ser compreendido, mas continua
sendo a Palavra de Deus.
Sendo um Deus que fala, Ele diz o Seu
nome. “Eu Sou o que Sou” Êx. 3:14).
Na tradição judaica o nome não é apenas a identificação de uma pessoa, mas
designa o seu próprio ser. Nesse caso, Deus e o Seu nome são idênticos, mas
também distintos. Ao dizer o Seu nome, Ele se identifica e se entrega a Israel,
mas permanece distinto, diferente do povo. Desse modo Ele entra no mundo e
permanece nele, de modo evidente, escolhendo um lugar para habitar, mesmo que o
mundo não possa contê-lo. A revelação do nome é bastante significativa para a
história da salvação. Quando veio a plenitude dos tempos, o nome deixou de
habitar em um lugar para identificar um Homem, de nome incomparável, “nome sobre todo nome” que ‘manifesta o nome’
de Deus Pai.
O Deus Pai de Israel também falou através
do anjo, mensageiro que o representa, que fala como se fosse o dono da
mensagem. Este enviado reforça a relação entre Deus e o povo de Israel. Ele
torna visível o invisível, mostra a imanência, mas Deus permanece
transcendente, até o envio do Anjo, na plenitude dos tempos. Outro meio pelo
qual Deus se comunica com Israel, aproximando os laços de paternidade e
filiação, são os profetas. Eles também são mensageiros que falam e agem em nome
de Deus, revelando a Sua paternidade. Entre Deus e os profetas existe uma
íntima e profunda relação, tão intensa que a Palavra de Deus é também palavra
deles, os sentimentos de Deus são também deles. Eles não só portam a palavra,
como também mediam a presença de Deus junto a seu povo. Também eles prefiguram
o Profeta de Deus, o mensageiro que porta e é a mensagem.
Através destas e de outras revelações,
Israel torna-se o “primogénito” de Deus neste mundo, com privilégios
especiais. Ele é a prefiguração da paternidade eterna de Deus para com o Seu
Primogénito, Seu Filho Unigénito. O próprio Deus disse ser “Pai para Israel” e
o povo reconhece isso ao acreditar que Ele é o Criador, o Libertador que
estabelece uma aliança e consolida assim uma relação de Pai e filho: o Pai que
dá o ser e o filho que o recebe. Nessa relação, supõe-se a obediência, mas o
que prevalece é o amor paterno, tão terno quanto o de mãe. Porém, Deus não quis
que esse amor ficasse apenas para Israel, mas que fosse conhecido por todos os
povos. O privilégio de Israel reveste-se então de responsabilidade para mostrar
ao mundo o seu Pai. Por isso, Israel prepara o mundo para a vinda do Filho que
concede a todos a graça da filiação. E a prova disso é que, ao longo da
história, muitas vezes é evidente a promessa de um herdeiro, de um Filho que
estenderia a herança à coletividade.
Quando Jesus disse aquelas palavras
acima mencionadas, Ele participava de uma reunião que praticamente encerrava a Sua
convivência com o grupo que escolheu para O acompanhar durante os últimos anos
de Sua existência na Terra.
Nessa ocasião, Cristo definitivamente
esclareceu a razão maior de Sua vinda ao mundo. Veio para ser o caminho do
reencontro do homem com Deus Pai. Trouxe-nos a verdade sobre o caráter do Deus
Pai, porque quer que tenhamos uma vida melhor, confiando em Deus, como um filho
confia no pai que o ama.
Embora fosse o Filho de Deus, tão divino
em natureza quanto o Pai que o gerou e através dEle criou todo o Universo,
Jesus não veio à Terra como um deus em busca de adoradores. Não, assumindo para
sempre a condição humana, Ele se apresentou como o único enviado para revelar
pessoalmente o caráter do Pai, através de Suas ações e ensinos.
Com frequência, Jesus utilizava a figura
de um pai amoroso para ilustrar melhor a divindade. Queria que soubéssemos que
o Deus Todo-poderoso é um ser pessoal, que nos ama como Pai amoroso e quer que
vivamos como Seus filhos. Mas a maior prova desse imenso amor divino foi Deus
nos dar o Seu Filho unigénito para que, através desse Caminho, conhecêssemos a
Verdade sobre o Pai e O amássemos e, assim, ganhássemos a Vida Eterna.
1.
Deus é Pai
Eterno
“E,
porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de Seu Filho,
que clama: Aba, Pai” (Gl. 4:6).
Deus é entendido como Pai na Teologia
cristã. Ele assegura nossa chegada ao Céu, “desde agora e para sempre”. Nenhuma
outra religião compreendeu a Deus Pai de forma tão íntima e familiar como o
cristianismo. Se houve um pai dos deuses para os gregos, este não era da mesma
forma o pai dos mortais. Zeus era o deus dos deuses e pai apenas destes;
quantos aos mortais, estes eram simples brinquedos ou bonecos para ele. Só no
cristianismo, por meio de Cristo, o cristão se aproxima de Deus Pai com o
espírito de Filho. Mas Deus não se tornou Pai ao criar os homens. Deus é Pai
Eterno. Por que eterno? Porque sempre foi Pai. E Pai de quem? Do universo?
Decerto que não, porque o universo não é eterno e está no tempo. Surgiu com o
tempo e se manifesta no tempo. Deus é Pai eterno porque tem um Filho que nunca
lhe faltou. Na eternidade Deus sempre é Pai e quem é pai o é porque gera um
filho. E o Filho de Deus é o seu Logos, a sua autorrevelação. Se nos fosse
permitido perguntar porque Deus existe, ou se fosse possível reduzir Deus a um
ente entre os existentes, poderíamos justificar a sua existência afirmando:
Deus existe para ser o Pai. Para gerar o Filho. Pois só gerando um ser no qual
ele mesmo inteiramente se vê, se compreende e se torna claro que Deus de nada
necessita ou nada lhe faz falta. Ele basta a si mesmo porque contempla em um
“outro” as suas próprias perfeições e estas se manifestam no Logos, Verbo,
Palavra; o Deus unigénito, como é dito no Evangelho de João, no capítulo 1:18
Este amor fecundo pelo qual Deus
subsiste e se basta, transborda em ação pelo Espírito Santo. É como se o
Espírito fosse o reflexo externo desta eterna relação de geração do Filho e da
contemplação do Logos em Deus. Por isso atribui-se ao Espírito Santo a criação
da vida e santificação das pessoas. É no Espírito que a paternidade única de
Deus em relação ao filho, se doa para nós. O Espírito exterioriza o mistério de
Deus Pai que faz com que este seja criador sem que necessite de criar. Sem que
acrescente algo a si mesmo ao criar e sem que uma coisa que foi criada ao
deixar de existir lhe faça a menor falta. A plenitude da criação é a elevação
do homem à intimidade com o criador. Aproximando-se de Deus Pai, nos tornamos
cada vez mais a imagem do Logos eterno, do Filho unigénito. Nós beneficiamos
desta Luz que não diminuiu e nem aumenta; que é sempre a mesma e na mesma
intensidade; que de nada sente falta e mesmo assim se doa sem nada perder. E
que ao doar-se transforma aqueles que nada são por si mesmos. Deus é Pai. Se a
linguagem humana fez da palavra pai uma expressão que indica dependência,
submissão, autoridade, nada nesta palavra implica que Deus seja pai no sentido
humano. A Paternidade de Deus é de outro nível. Faz parte da própria natureza
de Deus. É por ser Pai que Deus é Deus. E é por ser Filho que Deus é Pai. E é
por Ser Amor de Pai e Filho que Deus é Espírito Santo. Espírito vivificador,
criador, santificador e que sustenta a vida, a matéria e a consciência.
Ver Deus como Pai pode em alguns
alimentar o entendimento de que Deus é como aquele que deve atender os desejos
e que pede recompensas... Há sim, o perigo de transferir para Deus as
necessidades humanas de um filho, de tornar Deus pai como um pai humano,
humanizando a divindade. Fazê-lo segundo a nossa imagem e semelhança. Por isso,
ainda crianças, ouvimos de nossos pais: “Não faça isso que o papa do céu
castiga. O papa do céu vê o que está fazendo”. E a imagem paterna que temos,
quando não é positiva, muitas vezes, afasta de Deus. Deus como pai no sentido
humano do termo pode ser questionado em relação ao mal que há no mundo. Porque
um Pai omnipotente deixa sofrer tanto os seus filhos? Porque deixou que o
próprio Filho feito homem pagasse pelos pecados dos outros? Compreensão
limitada e deturpada da paternidade divina. Deus é Pai no sentido de doação
absoluta e incondicional. Dá-se inteiramente a si mesmo no amor que não o
conduz ao egocentrismo, mas à geração de si como imagem de suas perfeições.
Deus é Pai no Filho e pelo Filho que é a imagem do seu Ser. Por isso mesmo,
enquanto homem na terra, o homem Jesus, encarnação do Logos, pode dizer a
Felipe: “Quem me vê a mim vê o Pai”.
Porque no Filho se reflete a plenitude de Deus Pai que não é para si mas para o
dar-se. Para um outro que não é estranho à sua natureza. E nesta paternidade
eterna Deus se torna pelo Espírito Criador e no Espírito Santo Pai também de
toda a criação. Mas muito além disso, Pai dos seres racionais, os homens. Pois
os eleva da condição de simples criaturas à condição de participantes de sua
natureza divina pelo Espírito do Filho, que nos faz dizer Abba, Pai!
“Toda
a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em
quem não há mudança nem sombra de variação” (Tg. 1:17).
2.
Deus é Pai da
criação.
“…nele
foram criadas todas as coisas. … tudo
foi criado por ele e para ele ” (Cl. 1:15-16).
Um dos aspectos de Deus ser chamado de
Pai na Bíblia está associado ao universo criado. Ele é o Pai por ser o Criador,
a fonte e o sustento da criação. Deus é essencialmente Pai. Todas as suas obras
trazem os traços dessa paternidade, não para acrescentá-la, mas para
expressá-la de diversas maneiras. A obra da criação é um exemplo disso. Todas
as coisas são criadas por Deus. Ele é o sujeito dessa ação. As intervenções de
Deus procedem sempre de sua paternidade, sempre através do Filho. É nesse
sentido que dizemos que o Filho, o Verbo encarnado, é o “primogénito de toda
criatura”. Mas a sua primogenitura, sua anterioridade, por assim dizer, não é
temporal, pois Ele não está no começo da história, mas acima dela, num eterno
nascimento, no qual começa a actividade do Pai. O apóstolo Paulo disse: “Porque nele vivemos, e nos movemos, e
existimos; como também alguns dos vossos poetas disseram: Pois dele também
somos geração. Sendo nós, pois, geração de Deus, não devemos pensar que a
divindade seja semelhante ao ouro, ou à prata, ou à pedra esculpida pela arte e
imaginação do homem” (At. 17:28-29).
Afirmar que o Pai cria através do Filho
significa dizer que tudo tem origem em Deus, em sua paternidade em relação a
Cristo. Mas não é só isso. O Pai sempre age na direção do Filho, ou seja, a
criação tem um dinamismo que a leva para o Filho. É Ele o Alfa e o Ómega, não
só a origem, como também a plenitude final da criação. Como consequência, toda
a criação está, em seu dinamismo, inquieta, pois é atraída para o Filho, sua plenificação.
Desse modo, o mundo existe em evolução, numa realização progressiva, pois é
criado por Alguém e para Alguém. É dentro desse dinamismo que se situa o homem,
ávido por sua plena realização pessoal, ou melhor, por sua dignidade pessoal e filiação.
E é nesse dinamismo que ele encontra o sentido do mundo, da vida e da
existência, pois o início tende a um fim.
Deus é chamado de Pai na Bíblia por ser
a primeira pessoa da Trindade. Ele é o Pai eterno de Jesus Cristo — Deus, o
Filho. O relacionamento deles é singular. Deus é Pai no relacionamento íntimo
com todos aqueles que investem a sua fé nele. Deus é Pai como Criador e
Sustentador de toda a criação.
a) O Pai cria no Espírito.
É pelo amor que o Pai tem para com o
Filho que ele cria o mundo. Então, procedendo do amor do Pai, a criação é obra
filial. O Espírito que gera o Filho na eternidade é o mesmo que gera a criação,
tornando-a obra filial. Sendo a criação filial, vale também dizer que nela
vemos o Pai, pois ela é um espelho que o reflete. Mas, ela não é capaz de
revelar as profundezas do mistério de Deus Pai que só o Filho, conhecedor de
sua intimidade, é capaz de fazer.
Uma vez que a criação nasce na geração
do Filho, seu começo até se dá no tempo, mas a sua origem é na eternidade. Isso
quer dizer que Deus Pai não se tornou criador depois que as coisas começaram a
existir, Ele o é desde sempre. A obra da criação é um transbordamento do amor
do Pai pelo Filho, no Espírito. Esse mesmo amor que transborda, depois é
recolhido, retraído para o seio da Trindade, de onde saiu. Enquanto isso, a
criação segue seu rumo evolutivo, aberto, mas direcionado. E o homem,
consciente disso, colabora nesse processo, enquanto ele mesmo é beneficiado,
participante da eternidade divina. Essa colaboração é o modo de retribuir ao
Pai criador a sua gratuidade amorosa. Ele que cria o mundo para ser plenificado
em Cristo, cria também o homem para realizar-se no Filho, tornando-se filho
n’Ele. Cabe-nos esclarecer ainda, que toda a criação traz os traços da filiação
por proceder-se do Pai, mas não são filhos, como os cristãos, os prediletos do
Pai.
3.
Deus é Pai de
Misericórdias
“Bendito
seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai de misericórdias e Deus
de toda consolação”! (2 Co. 1:3).
Paulo trata Deus como o Pai das
misericórdias; isso significa que ninguém usou de misericórdia senão o Senhor.
Paulo sabia que ele próprio era fruto das misericórdias de Deus (Tt. 3:5). E as
suas misericórdias sempre nos alcançam, pois elas não têm fim (Lm. 3:22; Sl.
100:5; 103:17; 118:1), e podem ser representadas com compaixão, sentimento,
perdão entre outros. Habacuque dizia: “Na
tua ira lembra-te de mim nas tuas misericórdias” (Hc. 3:2; I Cr. 21:13).
Para alcançar as misericórdias de Deus é necessário reconhecer que estamos sob
a sua dependência. Ele é a fonte de toda misericórdia e consolação.
“Mas Deus que é rico em misericórdia, por
causa de seu grande amor com que nos amou, quando ainda estávamos mortos em
nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), e
nos ressuscitou juntos, e nos fez assentar nos lugares celestiais com Cristo
Jesus, para que nos séculos vindouros Ele possa mostrar a suprema riqueza da
sua graça, em bondade para connosco em Cristo Jesus” (Ef. 2:4-6).
É neste Deus que devemos acreditar: um
Pai que, desde o princípio da criação, abre os braços numa bênção cheia de
misericórdia, sem forçar ninguém, mas esperando sempre; sem deixar cair os
braços, e esperando sempre que os filhos regressem para lhes poder falar com
palavras de amor e para deixar que os braços cansados repousem nos seus ombros.
O seu único desejo é abençoar. O Deus “Pai
das misericórdias e Deus de toda a consolação” (2 Co. 1:3), está sempre
pronto a esquecer, a passar uma esponja e a remover a imundice das nossas iniquidades.
Alguém me disse que ao longo de toda a sua
vida tem lutado por encontrar Deus, por conhecer Deus, por amar a Deus; tem procurado
seguir as diretrizes da vida espiritual - orar constantemente, trabalhar pelos
outros, ler as Escrituras - e evitou muitas tentações de arranjar desculpas.
Falhou muitas vezes, mas voltou sempre a tentar, mesmo quando esteve à beira do
desespero.
Perguntei-lhe se durante todo esse tempo
teve ou não suficiente consciência de que Deus andou a procurar encontrá-lo,
conhecê-lo e amá-lo. A questão não é: Como há-de encontrar Deus, mas: Como há-de
deixar que Deus o encontre? A questão não é: Como pode conhecer Deus, mas: Como
pode deixar que Deus o conheça? Finalmente, a questão não é: Como vai amar a
Deus, mas: Como vai deixar-se amar por Deus? Deus anda por longe à sua procura,
tratando de o encontrar e desejando levá-lo para casa. Nas três parábolas em
que Jesus responde à pergunta: porque come com os pecadores? Põe a tónica na
iniciativa de Deus. Deus é o pastor que vai à procura da ovelha perdida. Deus é
a mulher que acende uma candeia, varre a casa e procura por todo o lado até
encontrar a moeda perdida. Deus é o pai que anda em busca dos filhos, vela por
eles, corre ao seu encontro, os abraça, roga, suplica e anima a que voltem para
casa.
Por estranho que pareça, Deus deseja
encontrar-nos tanto, se não mais, do que nós desejamos encontrar Deus. Sim,
Deus reclama-nos tanto como nós a Ele. Deus não é o pai que fica em casa,
imóvel, à espera que os filhos voltem para ao pé dele, à espera que peçam
desculpa pelo seu comportamento, que peçam perdão e prometam emendar-se. Pelo
contrário, abandona a casa sem fazer caso da Sua dignidade, corre à procura
deles, não quer saber de desculpas e promessas de emenda, e condu-los à mesa magnificamente
preparada.
A misericórdia do Senhor e a compaixão
para com os Seus filhos é realmente sem medida, como a distância entre o céus e
a terra. Nós somos vasos de misericórdia, vasos preparados por Ele para a
glória! Ele cercou-nos com Seu amor e compaixão. Ele é rico em misericórdia. Portanto,
o convite em Hebreus 4:16 é: “Aproximemo-nos,
pois, com confiança do trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia
e achar graça para socorro em ocasião oportuna”.
4.
Deus é Chamado
de Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo.
“Bendito
seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”! (1 Pe. 1:3).
Tal referencia se fundamenta na relação
peculiar que Jesus tinha com o Pai. “O criador e Pai do universo é o Pai de
Jesus”. A grande novidade é que o nome de Pai diz respeito a uma pessoa divina
singular. Jesus dirigindo-se a Ele como “Abba” se comporta como Filho, que se
entretém com o Pai em uma relação muito familiar.
Apesar de ser diversa, a Paternidade em
relação ao Filho e à Criação, estão vinculadas entre si. Não se pode considerar
completamente independente a geração eterna do Filho de sua mediação na
Criação. Deus é o Criador, não somente aquele que tudo pode fazer, mas aquele
que de facto governa tudo. O Deus Pai, eterno, Criador e sustentador de todo o
universo, omnipotente, omnisciente e omnipresente, santo, soberano sobre tudo e
todos, antes e agora, e para todo o sempre, é também, e, sobretudo, o Pai de
Jesus. A paternidade relativa ao Deus Filho, eterno, unigénito de Deus Pai,
encarnado, imaculado, Cordeiro de Deus, morto e ressurreto, único Mediador
entre Deus e os homens, dá
o seu verdadeiro sentido à paternidade cósmica e não o contrário.
Jesus gostava de chamar Deus de seu Pai
e nos ensinou a dizer: Pai-nosso, que estais no céu. Usou essa palavra para
exprimir a sua experiência de Deus. Jesus sentia Deus como uma pessoa muito
próxima dele, fonte de todo o seu ser, em quem podia confiar totalmente, a quem
era plenamente fiel e obediente. A coisa mais parecida que encontrou aqui na
terra com este Deus foi o pai. A relação entre pai e filho era para ele o que
se assemelhava mais à sua experiência de Deus. Para Jesus a palavra “Pai” é uma
maneira de dizer que Deus nos ama como o melhor dos pais, ou, mais exatamente,
muito mais do que o melhor dos pais ama os seus filhos.
Tal é a glória de Deus. É assim que Ele
é reconhecido em sua verdade, que é adorado, louvado, agradecido, quando é
bendito como Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.
Depois de ter dito “bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, a primeira
carta de Pedro passa, sem transição, para Deus, Pai dos féis, dos que creem em
Jesus Cristo. “Bendito seja o Deus e Pai
de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo a sua grande misericórdia, nos gerou
de novo para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os
mortos” (1 Pe. 1:3).
Nos evangelhos, esse Pai reconhece Jesus
como seu Filho. “E eis que uma voz dos
céus dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt. 3:17).
O Filho, da mesma forma, reconhece o
Pai. “Todos as coisas me foram entregues
por meu Pai; e ninguém conhece plenamente o Filho, senão o Pai; e ninguém
conhece plenamente o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser
revelar” (Mt. 11:27).
Os termos Pai e Filho são empregados
para descrever o relacionamento exclusivo entre as duas primeiras pessoas da
Trindade. A Bíblia não deixa dúvidas de que tanto o Pai quanto o Filho
coexistem desde a eternidade. Não houve um momento em que o Filho viesse a
existir. Por isso, não devemos fazer uma analogia rigorosa entre um pai e um
filho humanos quando falamos de Deus, o Pai, e Deus, o Filho. Estes termos têm
a finalidade de delinear a unidade, a coesão singular que há entre essas duas
pessoas divinas.
Portanto, um dos aspectos pelo qual Deus
é chamado de Pai é o seu relacionamento exclusivo com o Filho.
5.
Deus nos Tem Falado
Nestes Dias Através de Seu Filho
Jesus Cristo, a suprema revelação do amor
de Deus, é a revelação máxima de Deus. Toda a revelação de Deus por intermédio
dos profetas era incompleta. Deus precisava de multiplicar as palavras, porque
nenhuma das que dizia pelos profetas exprimia todo o seu mistério. O soberano
escolheu revelar-se a si mesmo de modo completo através de Jesus Cristo. A
história “da revelação divina é uma história de progressão até Cristo, mas não
há progressão além dele. “Mas nestes dias
que são os últimos, falou-nos por meio do Filho (…) que é o resplendor de Sua
glória e a expressão do Seu ser” (Hb. 1:2-3).
O próprio Jesus Cristo nos fala através
de homens que ele escolheu, incumbiu e inspirou através do poder do Espírito
Santo (Mt. 10:19-20; Jo. 14:26; 16:5-15; At. 1:8). Esses homens nos falam
através das palavras que eles escreveram e que estão registadas para nós no
Novo Testamento (1 Co. 14:37; 1 Ts. 2:13). Portanto, o Pai, o Deus do Sinai, que
é bondade, ternura e compaixão, manifesta a sua paternidade através das
palavras e da vida do Filho eterno, que entrou na história humana ao assumir a
nossa natureza. Cristo, com as suas obras e as suas palavras, revela-nos o Pai
e dá-nos a conhecer o Seu amor infinito. Essa revelação é feita neste fim dos
dias; ela é última, nenhuma outra virá acrescentar-se a ela; é plena, nela o
segredo de Deus se revela por inteiro. “A
revelação do mistério guardado em silêncio nos tempos eternos” (Rm. 16:25)
se manifesta, porque se realiza no mundo: gerando Seu Filho entre os homens,
Deus se entrega ao seu conhecimento. Ele enuncia Seu nome, o Pai do Filho
único.
A
verdade revelada sobre Deus, sobretudo por Jesus Cristo, é que Ele é Pai,
verdadeira e profundamente Pai, que ama, que tem Compaixão e Misericórdia, que é
o Pai Omnipotente, Santo e Justo, que, na sua bondade infinita, nos comunica a
vida, que se ocupa com carinho infinito de tudo o que é nosso, que nos
acompanha com a sua Providência amorosa, até à queda de um cabelo: “Não vos preocupeis, nem com a vossa vida,
acerca do que haveis de comer, nem com o vosso corpo, acerca do que haveis de
vestir... Olhai para as aves do céu que não semeiam, nem ceifam, nem fazem
provisões nos celeiros e, contudo, vosso Pai celeste as sustenta... Considerai
como crescem os lírios do campo e não trabalham nem fiam... Os gentios é que
procuram com excessivo cuidado todas estas coisas. Vosso Pai sabe que tendes
necessidade delas” (Mt. 6:25-34). O Pai é aquele a quem podemos confiar,
por intermédio dos nossos pensamentos retos, o mais ardente desejo do nosso
coração.
O Pai manifestou a sua paternidade e a
sua bondade através das palavras e da vida do Filho Eterno que entrou na
história humana ao assumir a nossa natureza: “Deus amou de tal maneira o mundo, que lhe deu Seu Filho Unigénito, para
que todo aquele que n'Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo. 3.16).
Jesus, com as suas palavras e os seus gestos revela-nos o Pai e dá-nos a
conhecer a sua bondade infinita. Deus não era desconhecido em Israel. Saulo, o
jovem perseguidor, conhecia o Deus de Abraão, de Isac e de Jacó. Ele o servia,
“progredindo no judaísmo mais do que
muitos compatriotas de sua idade” (Gl. 1:14). Apesar disso, sua ignorância
era muito grande. Não ia ele a Damasco “respirando
ameaças de morte” (At. 9:1) contra os seus irmãos de raça que se tornaram o
verdadeiro “Israel de Deus” (Gl.
6:16), o Israel que conheceu a Deus pelo seu nome verdadeiro? “Persegui a Igreja” (I Co. 15:9), “que está em Deus Pai e em nosso Senhor Jesus”
(cf. 1 Ts. 1:1). A ele se aplicava a palavra: “Vós o chamais de vosso Deus e não o conheceis” (Jo. 8:54s). Veio o
dia em que “Deus houve por bem revelar
Seu Filho” (Gl. 1:16). Então ele o reconheceu sob o seu nome verdadeiro e
se pôs a servi-lo com amor como “Deus pai
de nosso Senhor Jesus Cristo” (2 Co. 1:3).
6.
Jesus nos Revela
que Deus é Pai
Jesus revelava a face de um Deus
misericordioso que se volta com amor infinito e “doa o seu coração” ao mísero,
ao necessitado, ao pequeno, ao pobre e ao sofredor.
Revelando o seu Pai, Jesus queria
exprimir a unidade da história de Israel e demonstrar que Deus desde sempre
havia falado, não somente através dos profetas, mas também através dos sábios
do mundo grego. Cristo nos diz assim: “Ora,
a vida eterna consiste em que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a
Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo. 17:3).
“Ninguém
conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt.
11:27). Revelar o Pai para a humanidade é o que Jesus faz o tempo todo.
Jesus nos revela que Deus é um Pai de
amor e esse amor nos é provado concretamente através da Encarnação do seu
filho, que se humilhou a si mesmo assumindo a condição humana. Nisto se
manifestou o amor de Deus para connosco: em nos ter enviado ao mundo o seu
Filho único, para que vivamos por ele. “Porque
Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que todo
aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo. 3:16).
Jesus poderia ter usado outras palavras
para dizer quem é Deus, porque Deus é maior do que tudo o que podemos imaginar.
Nenhuma palavra humana é adequada para exprimir toda a riqueza da vida de Deus.
Por isso a Bíblia usa muitos termos para revelar os diversos aspectos de Deus:
Senhor, Rei, Salvador, grande, todo-poderoso, justo, santo, misericordioso,
fiel, e assim por diante. O apóstolo João condensou tudo o que o próprio Jesus
revelou sobre Deus na expressão: Deus é amor.
É significativo na vida terrena de Jesus
que uma das primeiras e uma das últimas palavras suas foram dirigidas ao Pai,
como chave que abre uma nova maneira de dialogar com Deus, e chave de leitura
que abre a porta da eternidade onde seremos acolhidos para sempre no abraço
amoroso do Pai.
Em Lucas 2:49 temos as primeiras
palavras pronunciadas por Jesus, que nos mostram todo o projeto que Ele veio
realizar, que por amor nos mostra a paternidade divina, estar totalmente a
serviço do Pai e não se deixar distrair por nada nem por ninguém. Mesmo se
incompreendido deve permanecer fiel àquele que o enviou para restaurar o reino
de Israel, para que todos sejam como um rebanho guiado por um pastor sábio.
E as últimas palavras, pronunciadas na
cruz, na sua dor imensa e profunda – não como um grito de desespero, mas de dor
– são uma pergunta filial ao Pai que, ao longo da vida, esteve sempre ao seu
lado. Jesus nos mostra como na dor só nos é permitido invocar o Pai para que
ele venha em nosso socorro: “nas tuas
mãos eu entrego o meu espírito” (Lc. 23:40).
Portanto, toda a vida de Jesus foi a de
revelar a bondade do Pai celeste que faz nascer o sol para todos;
independentemente se são maus ou bons: “Deste
modo sereis os filhos de vosso Pai do céu, pois ele faz nascer o sol tanto
sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os
injustos” (Mt. 5:45); que alimenta as aves do céu e veste os lírios do
campo, o que fará pelo homem? (cf. Mt 6:26-30); que sempre está pronto para
perdoar seus filhos (cf. Lc. 15:11-24); que vai atrás da ovelha perdida (cf.
Lc. 15:3-7). Jesus afirma mesmo que o Pai nos ama: “Pois o mesmo Pai vos ama, porque vós me amastes e crestes que saí de
Deus” (cf. Jo. 16:27). A vida de Jesus é uma perfeita sintonia com o Pai, e
um desejo permanente e constante de não realizar nada mais do que a vontade
dele: “Meu alimento é fazer a vontade do
Pai que me enviou”.
É o Pai o centro de unidade e de amor.
Somente Ele pode dar sentido à vida. O ápice desse amor de Deus-Pai por nós é a
morte do Seu Filho amado, para nos conceder Salvação e Vida Nova. Nisso fomos
ganhando o direito à participação na vida divina, e esta é a prova da Vida Nova
que o Pai nos concedeu pela morte do Seu Filho: “Visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e
piedade, pelo conhecimento daquele que nos chamou pela sua glória e virtude;
Pelas quais ele nos tem dado grandíssimas e preciosas promessas, para que por
elas fiqueis participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção,
que pela concupiscência há no mundo” (2 Pe. 1:3-4).
No Sermão da Montanha, Jesus anunciou a
providência de Deus-Pai na vida do homem, que abraça todas as suas
necessidades. Com a morte de Cristo na cruz, fomos adotados como filhos e
herdeiros de Deus, e recebemos o Espírito Santo, que é o único capaz de nos
fazer entender e aceitar esta filiação, a ponto de clamarmos a Deus como Pai, e
de facto nos apossarmos dos bens espirituais, que Ele derrama sobre nós
abundantemente, sendo que o maior bem é a Vida Eterna. Em Lucas 15:18-24;
observamos que o amor de Deus é concreto através das suas atitudes com relação
ao filho: como o espera, o acolhe, o restaura, parecendo esquecer todo o
passado... O Senhor sabe que somos frágeis e por isso nos ama e de nós tem
misericórdia.
Precisamos de deixar que Deus nos faça
experimentar o seu amor por nós. Precisamos de deixar Deus nos amar. É a
experiência com o amor de Deus que enfraquece as resistências do nosso coração
soberbo, prepotente, independente de Deus. E para isso, precisamos de ter e
aprofundar a nossa vida de oração, pois é o único meio de chegarmos até Ele.
Deus é Pai, Deus é nosso Pai! O mais
amoroso, de todos os pais! É deste amor e intimidade que germina toda a nossa
vida espiritual. É isto que nós precisamos de deixar crescer e desabrochar:
Deus é Pai; Meu Pai, Pai de amor. Para que seja gerado em nós o amor filial,
humildade, confiança, abandono, alegria. Só uma pessoa que crê ser
infinitamente amada corresponde a esse apelo de amor por um impulso, um desejo
bem simples de amar. As virtudes são germinação espontânea e natural da fé no
amor de Deus. Precisamos de compreender e experimentar que somos filhos de Deus
e, por conseguinte, infinitamente amados, com amor paternal por Deus, nosso
Pai.
É a fé no amor de Deus por nós que
explica tudo, que ilumina tudo, que esclarece tudo para nós. Mesmo quando Deus Pai
nos faz passar por caminhos sombrios, momentos difíceis, é a fé firme no amor
de Deus Pai que nos guiará e sustentará. É esta fé que nos fará dizer: É tão
doce servir a Deus na noite da provação! Temos só esta vida para vivermos de fé
e ainda: Sei que, além das nuvens, meu Sol está sempre a brilhar. Como sabe
isto? Pela fé no amor misericordioso de Deus.
Revelando o seu Pai, Jesus queria
exprimir a unidade da história de Israel e demonstrar que Deus desde sempre
havia falado, não somente através dos profetas, mas também através dos sábios
do mundo grego.
Vemos como Jesus falava com um amor
especial do Pai e, em suas últimas horas de convivência com os apóstolos,
apresentadas nos capítulos 15 a 17 de João, principalmente em sua oração
sacerdotal, Jesus repete 27 vezes o nome do Pai.
“Pai
é chegada a hora...” (Jo. 17:1). “E
agora, Pai glorifica-me junto de ti, com a glória que eu tinha junto de ti
antes que o mundo existisse...” (v. 5). “Pai santo guarda-os em teu nome...” (v. 11). “Que todos sejam um, como tu Pai estás em mim e eu em ti...” (v. 21).
“Pai, quero que, onde eu estiver, os que
me deste estejam também comigo...” (v. 24). “Pai justo, enquanto o mundo não te conheceu, eu te conheci...” (v. 25).
Mergulhemos na adoração silenciosa deste
amor de Deus Pai, falemos com Ele com toda a confiança, e que a força do
Espírito Santo nos permita proclamar que o homem jamais estará sozinho, sempre
terá um Deus Pai que o ama e quer por ele ser amado.
7.
Como é que Deus
Se Tornou Nosso Pai?
No princípio Deus criou Adão e Eva como
seus filhos. Ele os criou à sua própria imagem e soprou neles o fôlego de vida
ou o espírito. Como um pai sabia o que se passava na mente do filho e o filho
sabia o que se passava ma mente do pai, assim o Senhor sabia o que estava na
mente de Adão e Eva, e ambos sabiam o que ia na mente dele.
Referindo-se a seus filhos, Deus disse;
“A todos os que são chamados pelo meu
nome…criei para a minha glória” (Is. 43:7). O Senhor desejava que Adão e
Eva – a quem criou à sua própria imagem e semelhança e em quem soprou se
Espírito – lhe dessem glória e honra para sempre. Mas Adão e Eva recusaram-se a
permanecer filhos de Deus; de livre e espontânea vontade se tornaram sujeitos a
satanás. Ao violarem o mandamento divino, foi de imediato pronunciada uma
maldição, e seus espíritos morreram. Em Ezequiel 18:14 Deus disse: “Pois todas as almas são minhas; como a alma
do pai, também a alma do filho é minha. A alma que pecar, essa morrerá”.
Adão e Eva, após a violação do
mandamento divino, já não podiam dialogar com o Criador, nem agradar-lhe, nem
glorificá-lo. A imagem divina não mais se encontrava na humanidade caída. Mas
Deus não desistiu, por ser amor (1 Jo. 4:8). Portanto, o Pai é aquele que ama,
e Ele sempre deseja amar de forma transbordante a tantos filhos quantos for
possível.
Jesus expressou esse sentimento quando
disse: “Jerusalém, Jerusalém! Que matas
os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes eu quis ajuntar
os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e tu
não quiseste”! (Mt. 23:37).
Qual foi a vontade divina que Jesus
cumpriu ao morrer, proferindo a sua última palavra: “Está consumado” (Jo. 19:30)? O próprio Jesus responde à pergunta: “Pois a vontade do meu Pai é que todo aquele
que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último
dia” (Jo. 6:40).
Quando cremos em Jesus como Messias ou
nosso Salvador, temos vida eterna. Tendo a vida eterna – a saber, a vida do Pai
por via do novo nascimento da água e do Espirito – chegamos a conhecer a Deus.
Nosso espirito é vivificado. Ao recebermos a vida eterna, recebemos o Espirito
de adoção, pelo qual chamamos Deus de “Abba, Pai” (Rm. 8:15). Nesse momento, “o mesmo Espirito testifica com o mosso
espirito que somos filhos de Deus” (Rm.8:16) porque o Senhor “também nos selou e deu o penhor do Espirito
em nossos corações” (2 Co. 1:22).
Com grande eloquência o apóstolo Paulo
escreveu a respeito da vontade de Deus de fazer-nos seus filhos: “Bendito seja o Deus Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões
celestiais em Cristo… Em amor nos predestinou para sermos filhos de adoção por
Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito da sua vontade, para louvor
e glória da sua graça, a qual nos deu gratuitamente no Amado” (Ef. 1:3,
5-6).
Ele, que abriu o caminho para ser nosso
Pai, deseja que todos tenham a vida eterna e se tornem seus filhos. Ele cumpriu
todas as condições necessárias para que tivéssemos vida eterna e nos tornássemos
seus filhos.
Ele tinha um grande plano para fazer-nos
seus filhos. Deu-nos condições de chamá-lo de “Pai” mediante o envio de seu
Filho unigénito a este mundo para morrer. Ele também nos concedeu a intrepidez
de chamá-lo de “Pai” ao nos enviar o Espirito de adoção.
A Bíblia declara explicitamente que o
Pai é um Deus; e Jesus identificou explicitamente seu Pai como nosso Pai e seu
Deus como nosso Deus.
8. Abba, Pai: O nome singular
“Abba,
Pai” é uma palavra muito amistosa, muito terna, muito profunda e que vem do
coração. Não seria tão suave e reconfortante para nós dizer “Senhor Deus”,
“Deus” ou “Juiz”. É que o nome de “Abba, Pai” é inato por natureza e
naturalmente doce. É por isso, de todos os nomes o que mais agrada a Deus e,
mais do que qualquer outro, O incita a ouvir-nos, e, pela mesma razão,
confessamos, através dele, que somos seus filhos. “Porque não recebestes o espírito de escravidão, para viverdes, outra
vez, atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual
clamamos: Abba, Pai” (Rm. 8.15).
Invocar a Deus como Abba Pai é viver a
experiência batismal de morrer com Cristo para renascer, banhado pelo Espírito
de Deus, a vida eterna do Filho. É ser submergido no mistério eterno do Filho,
que tudo o que é o recebe do Pai e ao Pai o devolve na transbordante comunhão
de ambos que é o Espírito; é acolher a sua paternidade, viver filialmente e
deixar-se conduzir pelo seu Espírito. Essa vida é aquela para qual fomos criados.
Mergulhando
nessa prática, conduzida pelo Espírito de Deus e do seu Filho Jesus, que jorra
do seu lado aberto pela lança, os homens poderão sair da orfandade que esmaga
tantos e fazer a experiência extática de uma Presença que a dizer-lhes “YHWH,
Sou eu, não temais”, convida a invocar o Mistério com o nome singular: Abba,
Pai.
Em face da sarça que arde sem
consumir-se, Moisés pergunta a Deus qual é o seu nome. A indagação nasce das
profundezas abismais do coração humano de todos os tempos. Perante o Mistério
que o interpela, o ser que inevitavelmente se interroga a respeito do Sentido
da sua aventura histórica, não pode esquivar a pergunta: Qual é teu nome?
A resposta, enigmática, tem todo o
caráter de evasiva. Deus não quer pronunciar seu nome. Nenhum dos nomes usados
para designar as realidades terrenas, mesmo quando invocadas como divindades,
pode nomear o Mistério inefável, que ao chamar para uma missão libertadora, começa
assegurando a sua Presença protectora. À objeção de Moisés — “Quem sou eu, para ir a Faraó e fazer sair do
Egito os filhos de Israel? — Deus responde: Eu Estou contigo...” E quando
Moisés replica: “Eu irei para junto dos
filhos de Israel para lhes dizer: o Deus de vossos Pais me enviou a vós. Se me
perguntarem: Qual é seu nome? Que lhes direi”? Deus responde: “Eu Sou o que Sou... Assim falarás aos filhos de Israel: Eu Sou me envia a vós” (Êx. 3:11ss.)
O Deus de Israel recusa ser encerrado
num nome que possa ser enumerado entre nomes que designam as realidades criadas
e revela-se pelo tetragrama misterioso que manifesta uma Presença. O ser humano
reconhece no verbo que conjuga uma presença a voz que desvanece todos os temores
e abre trilhas inesperadas à esperança. “Sou eu, não tenhas medo” diz a mãe à
criança assustada por pesadelo noturno. “Sou
Eu, não temais” diz Jesus aos discípulos assustados ao revelar a sua
presença nas tempestades que se levantam contra os que o seguem.
O Todo-poderoso! Aquele que conhece o
meu futuro! Aquele que zela por aqueles que zelam pelo seu maravilhoso Nome!
Aquele que por ser Omnisciente conhece e sabe as intenções dos corações. E
quando nos relacionamos com o nosso Deus Pai na perspectiva do EU SOU o nosso
coração se aquieta e espera nas suas maravilhosas promessas. Que seja assim com
cada um de nós.
É perfeitamente normal que esse nome
remeta à experiência dos Pais: de Abraão, Isaac e Jacó. Porque a Presença
misteriosa deve ter continuidade na história, na diversidade das experiências
humanas. A presença do Mistério que só se revela na vida entendida como vida em
diálogo e caminhada solidária, à procura de uma terra onde viver em liberdade,
na esperança e na responsabilidade de uma descendência, “numerosa como as estrelas do céu”. Assim Deus se revelou a Abraão.
E a experiência arcaica ecoa no coração do homem e da mulher mais recentes, até
poderem exclamar surpreendidos, “A história de minha vida, quem a esconde em
terras de muito longe... Deve estar em qualquer parte a voz que minha alma
escuta. A voz que lhe está dizendo: Vem comigo que eu te levo a um paraíso...”
A experiência do Nome, revelado ao mesmo
tempo que escondido, só poderá realizar-se no Êxodo de todo o povo à procura
difícil da liberdade e a caminho de uma terra que não está pronta em lugar
algum e obriga a retomar incessantemente a caminhada “sem saber para onde se vai” e a “considerar a humilhação do Cristo como riqueza maior que os tesouros do
Egito”, conforme o ousado anacronismo da carta aos Hebreus 11:8-26, que
mostra a legitimidade da leitura sincrónica das manifestações bíblicas de Deus.
A experiência de Deus é imanente à
experiência da totalidade da aventura humana, embora a transcenda. Estes dois
polos, imanência e transcendência, devem estar presentes na hora de dar um nome
ao Mistério divino. Certas tendências actuais ao identificar Deus com o fundo misterioso
ou a profundidade abismal da realidade criada privilegiam o polo da imanência
deixando na sombra a transcendência. Por esse caminho torna-se totalmente
impossível dar um nome pessoal ao Mistério que envolve o homem.
Tais tendências, porém, são uma
advertência à facilidade de atribuir-lhe um nome que possa levianamente ser
enumerado entre os nomes que designam as realidades terrenas. Deus não é um a
mais entre
as criaturas. O Deus invocado com tanta frequência atualmente, sobretudo em
emissões de rádio e de TV, como garantia da prosperidade material ou como
pronto-socorro em situações insuportáveis de desemprego, de miséria, de doença,
não é concebido como uma força intramundana entre outras, revestida de
atributos divinos? Paradoxalmente, o esquecimento da imanência divina, do
Mistério presente e atuante em todas as realidades criadas, da sua
inefabilidade acaba por ser concebido como “mais uma força” ou “mais uma
pessoa” entre as realidades terrenas, embora imaginada com atributos
supra-humanos: anula-se a verdadeira Transcendência.
Alguém que não é a nuvem, nem o fogo,
nem as árvores, nem o rio, nem a suave brisa da tarde, nem o homem, nem a mulher...,
na nuvem, no fogo, nas árvores, no rio, na suave brisa da tarde, no homem, na
mulher... manifesta a sua presença. Imanência e transcendência de Deus, tão
graficamente expressas pela Bíblia com a imagem do Anjo de Deus, que mostra a
imediatez da comunicação divina à criatura, ao mesmo tempo que a necessidade da
mediação criatural, posta pelo próprio Deus, para que a mensagem divina possa
ser apreendida pelo homem.
Durante séculos o misterioso tetragrama
hebraico, YHWH, lembra pedagogicamente a distância do Mistério infinito do
qual, só ele próprio pode pronunciar o nome, ao mesmo tempo que a proximidade,
totalmente gratuita, de uma Presença. Até o momento em que o próprio Deus põe a
mediação definitiva para a auto-comunicação do seu Mistério à criatura: o
Filho, a Palavra eterna feita carne. Só então, na boca do Filho, se revela o
nome mais apropriado para invocar o Mistério transcendente que nos habita: Abba,
Pai.
Deus decidiu activamente ser o nosso
Pai, não porque éramos bons e merecedores, mas porque Ele é bom e gracioso.
Deus nos acolheu em nossa miséria e pecado: estávamos completamente sujos, e
quão grande era a nossa sujeira! Quando as pessoas no mundo visitam o orfanato
para adotarem uma criança, sempre escolhem as mais bonitas e saudáveis. Porém,
não foi assim com Deus: Ele decidiu escolher os mais feios, os mais doentes, os
mais miseráveis, em Sua santidade decidiu nos adotar em Cristo por livre e
espontâneo amor.
O nome YHWH devia ser entendido, não a
partir da designação de uma realidade terrena, como um nome entre outros, mas
da narração dos eventos divinos da salvação em favor do povo da Promessa. Assim
a designação de Deus como Pai não pode ser deduzida da experiência humana do
pai ou da mãe terrenos (embora o termo suponha essa experiência e a capacidade
analógica da linguagem). Só encontra o seu sentido revelador a partir da
narrativa do evento singular Jesus de Nazaré, como manifestação definitiva da
ação salvadora de Deus.
Nos lábios de Jesus a invocação singular
de Deus como Pai, em analogia com o tetragrama YHWH, conjuga e declina uma
Presença que se faz, no coração humano, intimidade e interioridade sem limites:
“Abba, Pai!... não se faça o que eu quero,
senão o que tu queres” Mc. 14:36. “Sede
perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste” (Mt. 5:48). “Quando orares, entra no teu aposento e,
fechando a tua porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em
secreto, te recompensará publicamente. …Orareis
assim: Pai-nosso, que estás nos céus…” (Mt. 6:6, 9). “Meu Pai” (Jo. 20:17). “se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai
celestial vos perdoará a vós” (Mt. 6:14-15).
A palavra Pai aparece centenas de vezes
no Novo Testamento. Nos evangelhos, nos lábios de Jesus. Nos outros escritos,
nos lábios do cristão. Dos lábios de Jesus passa aos lábios da Igreja. Para o
cristão Deus, é “o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo” em primeiro lugar, mas
também nosso Pai. E a invocação Abba, Pai, passa também dos lábios de Jesus aos
lábios do cristão. “Porque Deus enviou
aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba, Pai” (Gl. 4:6)!
Abba é um termo carinhoso expressado pela criança para seu amado pai, seu
herói, o único que beija o seu joelho ferido e seca as suas lágrimas. Abba
literalmente significa: Você é meu Paizinho. E o próprio Jesus nos ensina a
orar: “Pai-nosso, que está no céu...”.
Seguir a declinação da palavra Pai nos
escritos do Novo Testamento equivale a ser envolvido pelo Mistério da
encarnação do Filho de Deus, ao longo da trajetória que desce da eternidade e
infinitude de Deus até à kénose da cruz, para ser depois elevado, com o Filho,
ao âmago da glória divina, numa experiência que nenhum mortal poderia ter
sonhado.
O lugar da revelação que nos submerge no
Mistério eterno de Deus Pai só se dá no supremo extravasamento divino, na cruz
do Cristo, em que o Espírito é dado aos homens. Aí Deus se revela como relação
eterna e recíproca do amor do Pai e o Filho, na comunhão transbordante do Espírito.
Porque o Pai não poupou o Filho, expondo-o à violência de uma humanidade
transviada pelos caminhos da mais absurda negação da sua origem, para poder
acolher na casa paterna os filhos que se haviam perdido. E o Filho se revela
como tal ao carregar sobre si, na kénose do seu caminhar terreno, as dores e as
enfermidades do homem pecador no mesmo movimento de amor que o faz desde a
eternidade voltar-se para o Pai. Porque o Filho, feito carne, não pode
encontrar o Pai à margem da humanidade sofredora.
O Deus, que sendo eterna sobreabundância
do amor, não teria necessidade de nada fora de si, na liberdade do amor é
atraído para o ser humano porque o seu alimento é fazer a vontade do Pai, que é
a vida em plenitude dos filhos dispersos pelo pecado.
A lógica humana é incapaz de compreender
isto. Todas as tentativas de encerrar Deus nas categorias humanas do divino
caem por terra e só fica a afirmação de João: Deus é Amor ou a invocação de
Jesus: Abba, Pai! A primeira não pretende ser uma definição de Deus, porque o
predicado
não é exterior ao sujeito e nada fora de Deus poderia definir Deus. A segunda
não quer ser uma nomeação de Deus Pai a partir de uma realidade terrena, porque
Deus é maior que tudo o que possa ser pensado.
Ambas, a afirmação de João e a invocação
do Filho, outra coisa não fazem senão enviar-nos à narrativa do acontecido em
Jesus de Nazaré, convidando-nos ao seguimento. Somente a prática do amor no
encalço de Jesus — um amor que se abaixa até os mais desprezados da terra, um
amor disposto a dar a vida pelo menor dos irmãos — pode introduzir-nos no
Mistério que nos envolve e nos transborda. O Mistério que nos transcende
infinitamente, ao mesmo tempo que nos submerge na vida do Filho e com ele nos
impele a clamar Abba, Pai, no mesmo acto com que chamamos de irmãos Àquele e
àqueles que “desprezados, são deixados de
lado pelos homens, homens de dores, familiarizados com o sofrimento” (cf.
Is. 53:3).
Na cruz de Cristo se revela o poder, as
riquezas, a sabedoria, a fortaleza, a honra, o louvor e a glória de Deus, ao
ser revelado que o esplendor da vida humana, a sua glória, o seu valor é a vida
do irmão, “que estava morto e voltou a
viver, perdido e foi encontrado” (Lc. 15:24).
A afirmação de João “Deus é Amor”, remete
à manifestação do amor de Deus na missão do Filho como vítima de propiciação
por nossos pecados, e nos empurra a viver por Ele e a amar-nos uns aos outros como
ele nos ama, para que permaneça em nós o amor revelador de Deus (cf. 1 Jo. 4:8ss).
Mas, se nenhuma realidade criada pode
revelar ou nomear apropriadamente Deus, “porque
ninguém jamais viu a Deus” (1 Jo. 4:12), a revelação de Deus como Pai no
amor crucificado de Jesus Cristo que, ao doar-nos o Espírito, nos eleva às
alturas da própria vida divina, nos introduz nos escondidos recantos do amor
divino e põe em nossos lábios a palavra Abba, no mesmo impulso que nos leva a
abraçar e acolher na casa paterna o irmão que estava longe.
Abrem-se para a vida humana horizontes
dantes nunca vislumbrados, que das recônditas profundezas do Deus Pai que nos
acolhe filialmente, transborda até a experiência da paternidade e maternidade humanas.
“Porque o amor vem de Deus e todo aquele
que ama nasceu de Deus e conhece Deus” (1 Jo. 4:7).
Para preparar um povo capaz de receber
um dia a revelação de Deus Pai, YHWH dá ao seu povo a Lei da aliança, e o educa
e corrige incessantemente para que viva a justiça e a fraternidade nas relações
com os outros. Não é por puro acaso que os mandamentos da segunda tábua começam
com o preceito de honrar o pai e a mãe, em correspondência com os da primeira,
encabeçados pelo mandamento do amor a Deus.
Foi necessária esta longa educação de um
povo nos caminhos do amor, do respeito e da veneração do pai e da mãe, para que
um dia o Filho eterno de Deus, feito carne, aprendendo a viver humanamente como
filho de Maria e de José, revelasse na prática mais radical do amor fraterno,
no meio de um mundo violento, a fonte transbordante donde deriva toda a paternidade.
Paternidade que no ser humano, criado homem e mulher, se desdobra
necessariamente na complementaridade do pai e da mãe, como o mandamento do amor
divino se desdobra no mandamento de honrar pai e mãe.
A crise atual da vivência desta
complementaridade, a experiência de tantos e de tantas que sentem na carne a
rutura da unidade na nomeação do pai e da mãe, não estará a revelar a crise
mais profunda da falta da experiência fundante de Deus como Pai, no amor
crucificado de Jesus? Porque a crise da paternidade e maternidade humanas não
se resolverá com advertências éticas e muito menos com campanhas libertárias
numa concepção hedonista do amor, enquanto o ser humano não procurar a fonte de
toda a paternidade, na revelação singular da paternidade divina no êxtase de
amor da cruz de Cristo.
A busca de experiências esotéricas do
divino ou, mesmo dentro das igrejas cristãs, a ânsia de vivências que assegurem
ao indivíduo a proteção “especial” de Deus, defronte a tanta miséria e
desespero que o circundam, mostram, por contraste, a necessidade urgente de
reencontrar o verdadeiro lugar da revelação de Deus Pai: o lugar dos humilhados
e excluídos da terra. Numa sociedade que até com a religião está fazendo o jogo
do consumismo, na oferta alucinante de prosperidade e socorro nas situações de
desespero, a fé cristã obriga a lembrar que a invocação singular, Abba, Pai,
nasce dos lábios do Crucificado, que morre não para oferecer soluções fáceis ao
sofrimento humano, mas para abrir caminhos ao Amor, que da fonte inexaurível do
Mistério divino desce até o menor dos irmãos, para renovar todas as coisas.
Jesus
sabia como seria difícil nos convencer a quebrar hábitos e superar heranças
anteriores. Ele também sabia como terminaria a batalha com nosso pai anterior,
o inimigo. Tendo toda a sabedoria, fez de qualquer forma porque isso O
agradava. Não somente recebemos o Novo Pai, mas Romanos 8 e Gálatas 4 nos
ensina da especial distinção nesse relacionamento, onde podemos gritar “Abba
Pai”.
Quando os cristãos, se dispõem a
celebrar, nada mais conveniente para as Igrejas cristãs, que uma sincera
meditação, ao pé da cruz de Cristo, sobre a prática do Amor.
Mergulhando nessa prática, conduzidos
pelo Espírito de Deus e do seu Filho Jesus, que jorra do seu lado aberto pela
lança, os seus discípulos poderão sair da orfandade que esmaga tantos
companheiros de jornada e fazer a experiência extática, junto com os deserdados
da terra, de uma Presença que a dizer-lhes “YHWH, Sou eu, não temais”, convida
a invocar o Mistério com o nome singular: Abba, Pai.
9.
Por que Deus é
Pai?
Deus é Pai porque nos dá a vida
gratuitamente e numa atitude de puro amor. Por isso a paternidade de Deus não
se conquista através das nossas obras, mas tornando-nos diante dele como
“crianças”. É preciso, antes de mais nada, deixar-nos amar por Ele, numa
atitude de acolhida e de discipulado. Na consciência da nossa pobreza
descobrirmos a riqueza do amor paterno que faz surgir em nós uma nova vida (cf.
Mc. 9:33-35; 10:13-15; Jo. 3:1-15).
Deus é Pai porque perdoa sempre os
pecados da humanidade. O maior sinal do amor paterno, pleno e total é o perdão.
Jesus nos oferece o amor de Deus Pai como resposta a todas as enfermidades do
corpo e da alma. Em Deus Pai todos encontram o amor e a “cura” de todo mal.
Coxos, cegos, paralíticos, pecadores, publicanos, prostitutas... todos que se
aproximam com confiança de filhos experimentam o amor de Deus Pai. Como não
recordar a parábola do filho pródigo que, na sua volta, não somente é recebido
com amor, mas lhe é restituída toda herança perdida (Lc. 15)?
A humanidade de hoje, muitas vezes
seduzida por falsas luzes e religiões, como o filho da parábola pede o que é
seu e vai por caminhos desconhecidos, desperdiçando a graça e o amor até tocar
o âmago da miséria. Levanta-se e volta corajosamente para a casa do Pai que,
ansiosamente, nos espera para nos abraçar e nos cobrir de beijos, cobrindo-nos
com as vestes do amor e readmitindo-nos à plena comunhão. O homem, seja qual
for a sua culpa e pecado, jamais deve ter “medo de Deus Pai”. Não se pode ter
medo do amor do Pai que tem uma única missão: amar e perdoar.
Deus é Pai porque permanece aberto ao
diálogo com a humanidade. Não é um Pai autoritário, fechado em si mesmo, mas um
Pai que corre atrás dos filhos que se afastam dele ou os espera numa atitude de
abertura e de amor. É o Pai amigo e companheiro, que faz connosco a história e
nos oferece a cada momento a sua aliança. A sua delícia é viver entre nós.
No início do terceiro milénio
necessitamos, sem violentar o mistério da paternidade de Deus, redescobrir na
vida quotidiana a presença paterna de quem nos criou por puro amor e nos
admitiu em Jesus como seus filhos adotivos. Somos chamados filhos de Deus e na
verdade o somos. Quando o ser humano rompe com seus “pais” ou por eles não é
reconhecido, criam-se dramas imensos e profundos. Como não recordar a crescente
e constante atenção que a Igreja tem dado nestes últimos tempos à reconstrução
da “família”, reforçando a responsabilidade dos pais como primeiros
evangelizadores dos filhos e primeiras testemunhas da experiência do amor de
Deus, derramado em nossos corações?
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