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sexta-feira, 25 de maio de 2012

COMO SE VISSE O INVISÍVEL




E (Moisés) mostrou-se firme como se contemplasse o invisível (Hb. 2:27).
No mundo inteiro fazem-se, nestes últimos anos, sondagens, pesquisas e avaliações sobre o estado da oração. Fala-se de crise e abandono da oração, das dificuldades para entrar em comunicação com o Deus transcendente.
Entretanto, nessa avaliação geral, estão chegando, com unanimidade rara, à conclusão de que a decadência da oração provém de uma profunda crise de fé. Sublinha-se o sentido de que o centro da crise não está tanto no questionamento intelectual da fé mas na vivência da própria fé. Trata-se, pois, de uma crise existencial da fé. As pesquisas mais sérias concluem que não se deve pôr muito em evidência o problema das formas de oração. A crise principal não está em como expressar-se na oração mas em que expressar-se.
Procurando a utilidade prática, conforme a meta que nos propusemos, vamos preocupar-nos nesta reflexão, somente com o ato vital da fé que na Bíblia é sempre adesão e entrega incondicional a Deus. Vamos analisar também as dificuldades que tal ato envolve, especialmente quando sobrevém o silêncio de Deus, assim como também os desalentos que ameaçam constantemente a vida de fé! Essas dificuldades, normais e invariáveis para quem procura viver «para» Deus, hoje em dia são aumentadas devido a certas correntes de ideias que analisaremos com atenção.
Com estas reflexões, teremos ganho muito terreno no nosso empenho de explorar o mistério da oração, já que ela não é senão colocar em movimento a própria fé. Procuraremos, finalmente, alguns meios que nos ajudem a superar os desfalecimentos e situações difíceis.
I. O DRAMA DA FÉ
Ao abrir a Bíblia e contemplando a marcha do Povo para Deus no aprofundamento, esclarecimento e purificação da sua fé, chegamos a sentir vivamente como é difícil este caminho que conduz ao mistério de Deus, o caminho da fé! E não só para Israel, mas sobretudo para nós. Todos os dias vemos que o desalento, a inconstância e as crises nos aguardam em cada esquina.
Ao entrar, pois, neste verdadeiro túnel, devemos recordar aquele forte convite de Jesus: “Procurai entrar pela porta estreita” (Lc. 13:24).
A prova do deserto (Ex. 17:7)
A vivência da fé é uma peregrinação. Mais ainda, apresenta-no-la num nível paralelo com a travessia de Israel pelo deserto. Certamente aquela marcha constituiu a prova de fogo para a fé de Israel no seu Deus. É verdade que dessa prova saiu fortalecida a fé de Israel; todavia, aquela peregrinação esteve cheia de adoração e blasfémia, rebeldia e submissão, fidelidade e deserção, aclamação e protesto.
Tudo isso é um símbolo real das nossas relações com Deus enquanto estamos “a caminho” e, sobretudo, é isso o que aqui nos interessa sublinhar, é um símbolo das vacilações e perplexidades que sofre toda a alma na sua ascensão para Deus, mais concretamente na sua vida de fé. Poucos homens, talvez ninguém, se viu livre de tais desfalecimentos, como veremos com a Bíblia na mão.
No momento oportuno, Deus apareceu no cenário da história humana. Entrou para ferir, libertar, igualar. Amigo de Deus e condutor de homens, Moisés enfrenta o Faraó, reúne o povo disperso e põe-se em marcha para o país da Liberdade.
Saídos do Egipto, começa a grande marcha da fé para a claridade total. Mas desde os primeiros passos, a crise de fé começa a enroscar-se como uma serpente no coração do Povo. A dúvida sobe às suas gargantas para gritar: “O deserto será o nosso túmulo (Ex. 24:11). Não te dizíamos que nos deixasses servir aos Egípcios? Não era melhor do que morrer no deserto?” (Ex. 14:12). É preferível a segurança à liberdade. No meio da confusão, só Moisés mantém viva a fé: “Não temais, Deus fará brilhar a Sua Glória e amanhã mesmo vereis resplandecer essa Glória” (Ex. 14:17) porque Deus combaterá por nós e connosco.
Com essas palavras, a fé do Povo inflamou-se de novo. E com os seus próprios olhos contemplam fenómenos nunca vistos. De súbito, começou a soprar um vento forte do Sul, que cortou as águas e as dividiu em duas grandes massas. E o povo passou como entre duas muralhas, enquanto os Egípcios ficavam pregados como chumbo no fundo do mar. Ante semelhante prodígio o Povo acreditou em Deus e em Moisés Seu servo (Ex. 14:31), e entoaram um cântico triunfal (Ex. 15: 1-23). Entretanto, uma vez mais fora preciso um “Sinal” para recuperar a fé. “Crestes porque vistes, felizes aqueles que creem sem terem visto” (Jo. 20:29).
Avançou a caravana durante três dias, internando-se a fundo no deserto do Sul. O deserto volta a provar a fé do Povo. O silêncio da terra e, às vezes, o silêncio de Deus invadem as suas almas, e sentem medo. Esgotaram-se as provisões. Que comerão? Como aves de rapina caem sobre o Povo o desalento, as saudades e a rebeldia. “Trouxeste-nos ao deserto para morrermos de fome? Seria melhor ter morrido pela espada às mãos dos Egípcios” (Ex. 16:3).
O Povo sucumbiu à tentação das saudades e “chorava enquanto dizia: Oh! Aquela boa carne no Egipto! Oh! Aquele saboroso peixe que comíamos de graça no Egipto! E os melões, aqueles pepinos e aquelas cebolas e aqueles alhos!” (Nm. 11:5).
Moisés, cuja fé se mantinha inabalável, porque diariamente conversava com Deus «como um amigo», disse-lhes: “Nada tenho a ver com as vossas murmurações, essas vozes são queixas contra Deus. Mas afirmo que amanhã mesmo vereis outra vez a Glória de Deus. Os vossos protestos ficarão reduzidos a ridículas vozes (Ex. 16: 5-9). Na tarde seguinte, um bando de codornizes cobriu todo o campo e no outro dia apareceu sobre a terra algo semelhante a orvalho, com o que o Povo se saciava todas as manhãs” (Ex. 16: 13-16).
A caravana continuou avançando para Cades Barne, sob um sol de fogo e sobre um mar de areia ardente. À medida que avançava, novamente o desalento e a tentação lhes perturbaram as almas; a tentação definitiva de se deterem, de abandonarem a marcha e regressarem às comodidades antigas, ainda que fosse em estado de escravidão. “Trouxeste-nos ao deserto para matar de sede a nós, nossos filhos e nosso gado” (Ex. 17: 3).
Nesse momento, uma dúvida pungente destrói a recordação de tantos portentos, corrói o fundamento da sua fé e expressa-se naquela terrível pergunta: Deus está connosco, sim ou não? (Ex. 7: 7)· A dúvida havia alcançado o mais alto nível. Por isso aquele lugar chamou-se (“Masá”  porque protestaram contra Deus) e  (“Meribá” porque desafiaram a Deus). Essa foi a grande prova do deserto na marcha para Canaã.
Poucos homens de Deus se livraram de alguma forte provação.
Novas provações em novos desertos
Se sempre foi áspera e difícil a rota da fé, nos nossos dias as dificuldades aumentaram. Hoje a Igreja está atravessando um novo deserto. As ameaças que espreitam (os crentes são as mesmas de outrora: desalentos por eclipses de Deus, aparição de novos «deuses» que reclamam adoração, e a tentação de suspender a marcha da fé, para voltar ao confortável e “fértil Egipto”.
a) Dificuldades intelectuais
O homem viveu milhares de anos sob a tirania das forças cegas da natureza, forças que ele endeusou. Para resistir às forças divinizadas, o homem recorreu aos ritos mágicos. Embora a Bíblia seja uma purificação desses conceitos e costumes mágicos, no nosso recôndito mais remoto ficaram reminiscências, muitas das quais nós atribuímos ao Deus da Bíblia.
A técnica abalou essas convicções e costumes. A ciência dá explicações para o que antes se atribuía a divindades míticas ou se considerava atributo exclusivo de Deus. E surge um perigo: o de confundir o mágico com o sobrenatural, arrasar indiscriminadamente um e outro sem distinguir convenientemente o trigo do joio, e chegar à convicção de que tudo o que não for ciência-técnica, ou não existe ou é uma projeção da nossa impotência ou do nosso temor.
Realmente, em tempos passados, muitos fenómenos da natureza eram explicados relacionando-os com Deus. Agora, ao comprovar que todo o fenómeno natural se explica com métodos científicos, imperceptivalmente podemos desentender-nos com Deus. Ao passo que a nossa mente vai descrendo daquelas explicações, na mesma medida a nossa vida consciente vai-se esvaziando gradualmente da presença de Deus. Muitos sentem intimamente e outros dizem abertamente que a ciência acabará por explicar o inexplicável e que, no futuro, Deus será uma “hipótese” desnecessária.
Entretanto, nem a tecnologia nem sequer as ciências sócio-psicológicas jamais conseguirão dar resposta cabal à pergunta fundamental e única do homem, a questão do sentido da vida. Quando o homem tropeça no seu próprio mistério, quando sente a maior estranheza por “estar aqui”, por estar no mundo como consciência e como pessoa, só então surge esta questão central:
Quem sou eu? Qual a razão da minha existência? De onde vim? Haverá um futuro para, mim? Que futuro? 
Hoje não se fazem campanhas contra Deus, cheias de argumentos e de paixão. Simplesmente prescinde-se d'Ele, é abandonado como um objecto que já não serve. É um ateísmo prático, mais perigoso que o sistemático, pois penetra suavemente nos reflexos mentais e vitais.
A nossa síntese teológica não resiste à visão cósmica e antropológica que nos dão as ciências. As investigações obrem a origem do homem e do mundo ficam muito longe dos dados da Escritura, apesar de hoje afirmarmos que a Bíblia não pretende dar explicações científicas.
Sem poder evitá-lo, sentimos o contraste entre a nossa dificuldade de expressar Deus com sinais e símbo­los, e a expressão das ciências que são fórmulas diáfanas, (transparentes, lúcidos, videntes e diretas). A clareza dos métodos científicos de investigação desconcerta-nos pelo contraste com os nossos métodos indutivo-dedutivos, pelas vias analógicas para conhecer a Deus.
Se não tivermos amadurecido pessoalmente uma fé coerente com as descobertas científicas, sobrevém a secularização que, sem dúvida, é um processo purificador da imagem de Deus. Mas, como muitos não conseguem distinguir as fronteiras desse processo conveniente necessário, passam para o terreno da secularidade e terminam num secularismo profano em que a fé em Deus se debate em agonia próxima da morte. “Tudo isso está originando uma ideologia radical e exclusiva, que só admite o século, o mundo, o profano”.
Como consequência dessas ideias e factos, surge o «horizontalismo», ideologia que debilita a fé e problematiza os nossos solenes compromissos com Deus, porque diz que qualquer esforço aplicado ao que não pertence a este mundo é “alienação”. A vida com Deus, tempo perdido; qualquer «entretenimento» religioso, tempo mal aproveitado; a entrega total a Deus, absurdo e prejudicial; a única atividade válida, a promoção humana; o único pecado, a alienação.
Essa inspiração ambiental vai penetrando na alma dos crentes que, outrora, por uma fé incondicional, estavam ligados a Deus, com uma forte aliança.
Tenho a impressão de que o novo Povo de Deus se atolou outra vez em Masá e em Meribá, onde a fé descera aos níveis mais baixos, e já se encontram, como lá, os lamentos e desafios. Para muitos a fé, hoje em dia, é uma (palavra dura) e quem pode suportá-la? (Jo. 6:60). Como em toda a época de purificação, realizar-se-á o que disseram aquelas trágicas palavras: “Desde então· muitos dos seus discípulos retiraram-se e já não andavam com Ele” (Jo. 6: 66).
Depois do desconcerto virá a maturidade, quer dizer, uma síntese coerente e vital, elaborada pessoalmente, não extraída dos manuais de teologia: síntese em que se fundem os progressos das ciências com uma profunda amizade com Deus. Entretanto, este período que estamos atravessando ajudará a purificar a imagem de Deus.
A fé é uma adesão a Deus, mas não a adesão a uma imagem que se formou de Deus, nem uma adesão à fé do Deus que alguém concebeu, mas adesão ao Deus que existe.
O mundo moderno entusiasmou-se com as grandes invenções científicas, com a técnica e a organização, como o menino que acaba de estrear a bicicleta e para andar nela falta à Escola Dominical do domingo. A bicicleta tornou-se um ídolo, alguma coisa absoluta.
Mas quando, depois de várias quedas com a bicicleta, toma consciência de que ela não é absoluta, mas um valor relativo, decide ir à Escola Dominical, mas de bicicleta.
Que vale ao homem ter muitas coisas, chegar até a resolver o problema da fome, se depois morremos todos de aborrecimento?
b) Dificuldades vivenciais
Aceitaram como critérios de vida o imediatismo, a eficácia e a rapidez. Pelo contrário, a vida de fé é lenta e exige uma constância sobre-humana. O seu progresso é oscilante e não é comprovável com métodos exatos de mediação; em consequência, sentimo-nos defraudados, confusos e como perdidos na selva.
Pela influência das ciências psicológicas e sociológicas prevalecem, hoje em dia, os critérios subjetivos. O que era “objetivo”, como as verdades da fé, as normas da moral ou do ideal, perdeu a sua atualidade e valor, abrindo caminho livre para os valores subjetivos e instintivos. Hoje está em moda o emocional, o afetivo e o espontâneo.
Daí decorre o facto da completa desvalorização de certos critérios como o domínio de si mesmo, enquanto o comodismo se ergue como nova norma de comportamento. Não têm sentido, hoje em dia, a ascese (prática das virtudes pelo exercício da vontade), a superação, a privação, elementos indispensáveis na marcha para Deus. Para muitos estas palavras são até repugnantes: pensam, pelo menos, que são prejudiciais para o desenvolvimento da personalidade.
A norma que praticamente foi adotada coincide em tudo com o ideal da sociedade de consumo: desfrutar a vida ao máximo, consumir o maior número de bens, conceder-se o máximo de satisfações dentro daquele ideal de comamos e bebamos e coroemo-nos de rosas. Claro que isso não se diz com palavras tão claras.
Diz-se: temos que evitar a repressão, temos que fomentar a espontaneidade, não se deve violentar a natureza, é preciso garantir a autenticidade.
Hoje em dia não se sabe o que fazer com o silêncio. A sociedade de consumo criou uma variada indústria para fomentar a distração e a diversão, e dessa maneira poupar o homem ao «horror do vazio» e à solidão. Deste modo acomoda-se o objeto ao sujeito, não se suportam as normas estabelecidas e dá-se largas à espontaneidade, filha do subjetivismo.
Vivemos no novo deserto. O caminho para Deus está eriçado de dificuldades. As tentações mudaram de nome. Antigamente as tentações eram panelas cheias, peixe frito, carne assada, cebolas e pepinos do Egipto. Hoje as tentações são horizontalismo, hedonismo, secularismo, subjetivizo, espontaneidade, frivolidade. 
Quantos peregrinos chegarão à Terra Prometida? Quantos abandonarão a dura marcha da fé? Teremos que convir, também nós, que só um «pequeno remanescente» chegará à fidelidade total a Deus? Qual é e onde está o «Jordão» que teremos de atravessar para entrar na zona da Liberdade? O horizonte está uma vez mais povoado de perguntas, silêncio e escuridão. É o preço da fé!
Estamos num processo de decantação (Purificação): A fé é um rio que avança. A impureza depositou-se no leito do rio, mas a correntes águas continua.
2. DESCONCERTO E ENTREGA
A fé, na Bíblia, é um ato e atitude que abrange o homem todo, a sua confiança profunda, a sua fidelidade, o seu consentimento intelectual e a sua adesão emocional, abrangendo também a sua vida, comprometendo a sua história inteira, com os seus projetos, emergências e eventualidades.
A fé bíblica, ao longo do seu desenvolvimento normal, engloba os seguintes elementos: Deus põe-se em comunicação com o homem. Depois, Deus pronuncia uma palavra e o homem entrega-se incondicionalmente. Deus põe à prova essa fé. O homem perturba-se e vacila. Deus revela-se de novo. O homem aceita o plano delineado por Deus, participando profundamente da força de Deus.
Esta fé é a que fez Abraão “andar na presença de Deus” (Gn. 17:1), expressão cheia de um denso significado: Deus foi a inspiração da sua vida; foi também a sua força e norma moral; fui sobretudo o seu amigo. Nessa mesma linha, diz a Escritura que “Abraão confiou no Senhor, e o Senhor imputou-lhe como justiça” (Gn. 15: 6). Com estas palavras, quer indicar não só que essa fé teve um mérito especial, mas que ela condicionou, comprometeu e transformou toda a sua existência.
Os elementos mencionados estão vivamente expressos na Epístola aos Hebreus:
Pela fé, Abraão, obedecendo ao apelo divino, partiu para uma terra que ia receber como posse; e partiu não sabendo para onde ia. Pela fé, foi habitar na terra da promessa, como numa terra. estrangeira, morando em tendas com Isaac e Jacob, co-herdeiros da mesma promessa, porque esperava a cidade assentada sobre os fundamentos eternos, cujo arquiteto e construtor é Deus.
Foi na fé que todos estes morreram, sem atingir a verdade do que lhes tinha sido prometido. Mas somente as viram e as saudaram de longe, confessando que «eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra). Dizendo isto, declararam que buscavam uma pátria...
Pela fé submeteram reinos, exerceram a justiça, obtiveram as promessas, taparam a boca dos leões, extinguiram a violência do fogo, escaparam ao fio da espada, triunfaram de enfermidades, foram corajosos na luta e puseram em debandada as invasões estrangeiras.
Pela fé foram martirizados, sem aceitar resgate, para alcançar melhor ressurreição; outros sofreram a prova das injúrias, dos açoites, cadeias e prisões; foram apedrejados, serrados ao meio, tentados, e morreram ao fio da espada. Andaram errantes, vestidos com peles de ovelhas e de cabras, necessitados de tudo, perseguidos, maltratados, vagueando por desertos, montanhas, cavernas e em antros subterrâneos” (Heb. 11: 1-39).
A história duma fidelidade
O Novo Testamento apresenta Abraão como protótipo da fé, exatamente porque nele, como em poucos crentes, talvez em nenhum, se realizaram as alternativas dramáticas da fé. Foi o verdadeiro peregrino da fé.
Deus deu a Abraão uma ordem que também era promessa: “Sai da tua terra... para uma terra que te indicarei, e far-te-ei pai de um povo numeroso” (Gn. 12:1-4). Abraão acreditou. Que significou este acreditar? Significou entregar um cheque em branco, confiar contra o senso comum e as leis da natureza, entregar-se cegamente e sem cálculos, romper com uma situação estável e, aos setenta e cinco anos, pôr-se a caminho (Gn. 12: 4) para um mundo incerto “sem saber para onde ia” (Hb. 11: 8).
Mas essa entrega, tão confiante, custar-lhe-ia muito caro e obrigá-lo-ia a pôr-se em estado de alta tensão, não isento de confusão e perplexidade. Numa palavra, Deus submete à prova a fé de Abraão.
Passam os anos e não chega o filho da promessa. Deus mantém Abraão num perpétuo “suspense”, como nas novelas em capítulos, que cada noite terminam no instante que parecia o desenlace; assim, Deus em seis oportunidades distintas faz a promessa de um filho (Gn. 12:16; 15: 5; 17:16; 18:10; 21:23; 22:17). Passaram-se dezenas de anos e o filho não chega. Abraão vive, nesse período, a história de uma fidelidade em que se alternam angústias e esperanças, como o sol que aparece e desaparece entre as nuvens. É a história do “esperando com fé, contra toda a esperança” (Rm. 4: 18).
Em todo esse tempo, Abraão vive uma ansiosa espera, resistindo contra as regras do senso comum e das leis fisiológicas, para não desfalecer na sua fé (Gn. 18:1), parecendo ridículo a sua mulher: “Sara ria no interior da tenda de campanha, dizendo: Agora, velha como sou, irei florescer em nova juventude? O meu marido também está velho” (Gn. 18:12).
A solidão bate à porta do coração de Abraão. Tem que sofrer com a separação do seu sobrinho Lot (Gn. 13:1-18). Apesar das vitórias contra os quatro reis, do aumento da riqueza e dos servos, em seu coração começa a fraquejar a fé, e a angústia vai aumentando dia-a-dia.
Chega um momento em que a sua fé está a ponto de desfalecer por completo. No meio, de um profundo desalento, queixa-se a Deus, dizendo: É verdade que me deste muitos bens, mas para quê? “Vou morrer depressa; não me deste filhos e todos os bens que me deste herdá-los-á um criado, o damasceno Eliézer” (Gn. 15:2-4). Então Deus reafirmou a promessa.
Mas, neste momento, a fé de Abraão debate-se numa profunda crise: “Caiu Abraão por terra e ria murmurando em seu coração: Como terá um fIlho um centenário? E Sara que já tem noventa anos vai dar à luz?” (Gn. 17:17). Em resposta, Deus tirou Abraão do interior da tenda para a formosa noite estrelada, e disse: “Levanta os olhos para o céu, conta as estrelas, se és capaz. Pois assim numerosa será a tua descendência” (Gn. 15:5).
Sempre nos acontece o mesmo. Quando desfalece a fé, precisamos de um sinal, um refúgio para não sucumbir. Compreensivo e compassivo ante a emergência e debilidade que está sofrendo a fé de Abraão, Deus concede o sinal. “Perguntou Abraão: Senhor Deus, como saberei que tudo isto é verdade?” (Gn. 15:8). No meio de uma densa escuridão, após o ocaso do sol, Deus tomou a forma (sinal) de um archote resplandecente que passou entre as metades das vítimas» (Gn. 15:17).
Abraão tinha cem anos de idade quando nasceu seu filho Isaac” (Gn. 21:5).
A prova do fogo
Verificamos, na raiz desses acontecimentos., que a fé de Abraão não só se recuperou na sua totalidade, como se consolidou definitivamente. Aprofundou-se a ponto de o fazer viver permanentemente em estranha amizade e trato com o Senhor, conforme se havia dito: “Anda na minha presença e serás perfeito” (Gn. 17:1). Imaginamo-lo como um homem curtido na provação; imunizado contra toda a possível dúvida, dono de grande maturidade e consistência interior. “Abraão plantou em Bersebá um tamarindo, e invocou ali o nome de Javé, o Deus eterno” (Gn. 21:33).
Deus, vendo Abraão tão sólido, submete-o a uma prova final de fogo. Vamos ver com que grandeza e serenidade ele supera a prova.
“Depois disto, quis Deus provar Abraão, e chamando-o disse:
- Abraão!
Este respondeu:
- Eis-me aqui!
Disse Deus:
- Toma teu filho, o único, a quem tanto amas, sobe a Moriá e lá sacrifica-o sobre uma das montanhas que te indicarei” (Gn. 22:2-3).
Na minha opinião, neste episódio a fé bíblica escalou o seu mais alto cume.
Para compreender, na sua exata dimensão, o conteúdo e grau da fé de Abraão neste episódio, temos que pensar que executar um ato heroico pode ser atraente, quando esse ato tem sentido e lógica, tal como dar a vida por uma causa nobre e bela. Mas submeter-se a uma ordem heroica, quando a ordem é absurda, ou se está louco ou a motivação dessa submissão ultrapassa os nossos conceitos e regras de heroísmo.
Situemo-nos no contexto vital de Abraão e ponha­mo-nos a explorar o mundo interior de impulsos e motivos deste grande crente. Sempre suspirara Abraão por ter um filho. Sentia-se velho e perdera a esperança de obter descendência. Entretanto, um dia Deus promete-lhe o filho. Como para Deus nada é impossível, Abraão acreditou. Passados muitos anos de esperanças e desesperos, chegou o filho, que será o depositário das promessas e das esperanças. Abraão pode morrer em paz. Mas, à última hora, Deus pede que sacrifique o menino.
Uma exigência tão bárbara e louca era para aniquilar toda a fé de uma vida. O mais elementar senso comum lhe asseguraria ter sido vítima de alucinação. Contudo Abraão mais uma vez acreditou. Este crer custou um abandono-confiança em grau ilimitado.
Imaginemos um diálogo consigo mesmo:
-  Sou velho e por isso não poderei ter mais filhos?
Não sei. Ele sabe tudo. Ele tudo pode.
- Será que vou morrer já sem deixar herdeiro?
Ele proverá: é capaz de ressuscitar um morto e até de transformar as pedras em filhos (Mt. 3:9).
- Pode ser ridículo e absurdo o que Ele me pede?
Ele é Sábio, nós não sabemos nada.
Quer dizer, há uma disposição incondicional de entrega, de abandono com uma confiança infinita, uma certeza infalível de que Deus é poderoso, bom, justo, sábio, contra todas as evidências do senso comum; é como cair no vácuo, mãos e pés amarrados, porque Ele permitirá que os pés batam contra o solo.
Creio que esta é a substância definitiva - e o momento culminante - da fé bíblica.
Vejamos agora como procede Abraão, cheio de infinita paz, de grandeza e de ternura:
“No dia seguinte, pela manhã, Abraão selou o seu jumento. Tomou consigo dois servos e Isaac, seu filho, e, tendo cortado a lenha para o holocausto, partiu para o lugar que Deus lhe tinha indicado.
Ao terceiro dia, levantando os olhos, viu o lugar de longe.
Ficai aqui com o jumento, disse ele aos servos; eu e o menino vamos até lá mais adiante para adorar, e depois voltaremos a vós.
Abraão tomou a lenha para o holocausto e pô-la aos ombros de Seu filho Isaac, levando ele mesmo nas mãos o fogo e a faca. E, enquanto juntos os dois caminhavam, Isaac disse ao pai:
-Meu pai!
- Que há, meu filho?
Isaac continuou:
- Temos aqui o fogo e a lenha; mas onde está a vítima para o holocausto?
- Deus, respondeu-lhe Abraão, providenciará uma vítima para o holocausto, meu filho.
E ambos, juntos, continuaram o seu caminho. Quando chegaram ao lugar indicado por Deus, Abraão edificou um altar; colocou nele a lenha, ligou Isaac, seu filho, e pô-lo sobre o altar em cima da lenha. Depois, estendendo a mão pegou na faca para imolar o filho. O anjo do Senhor, porém, gritou-lhe do céu:
- Abraão! Abraão!
- Eis-me aqui!
- Não estendas a tua mão contra o menino, e não lhe faças mal. Agora eu sei que temes a Deus, pois não recusaste o teu próprio filho, o teu filho único” (Gn. 22:3-12).
Nesta narração, a fé e o abandono adquirem relevo\ particulares. Deus providenciará é o fundo musical que dá sentido a tudo. É muito significativo que esta narração termine com este versículo: Abraão chamou a este lugar “Javé providência”, pelo que até hoje se diz: “No monte de Javé se providenciará” (Cn. 22:14).     
A esperança contra toda a esperança
A história de Israel é outra história de «esperar contra a esperança. Nos longos séculos que passam desde o Sinai até à “plenitude dos tempos” (Gl. 4:4), Deus aparece e desaparece, brilha como o sol ou esconde-se nas nuvens; há teofanias clamorosas ou longos períodos de silêncio. É uma longa caminhada de esperanças e de desalentos. Deus quis que a história de Israel fosse a história de uma experiência de fé. Por isso, tanto lá como na nossa própria vida de fé, encontramo-nos frequentemente com o silêncio de Deus, a prova de Deus, a noite escura.
Israel foi tirado do Egipto e lançado num interminável peregrinar rumo a uma pátria soberana. Foi uma longa rota de areia, fome, sede, sol, tédio, agonia e morte. Foi-lhes prometido que ganhariam uma “terra onde mana leite e mel”. Nenhuma dádiva, mas uma conquista prolongada à custa de derrotas, humilhações, sangue e suor. Nem leite nem mel, mas uma terra calcinada e hostil, que teriam de cultivar com mil dificuldades.
Chegou um momento em que Israel se convenceu de que Deus ou não existia ou os tinha abandonado completamente, e de que a nação estava riscada do mapa para sempre. Foi no ano 587 a. C., quando os exércitos de Nabucodonosor conseguiram quebrar a resistência de Jerusalém após 18 meses de sítio. Caiu a cidade e a vingança foi horrível.
Jerusalém foi saqueada, arrasada e incendiada. O famoso templo de Salomão desmoronou-se envolto em chamas. A arca da Aliança desapareceu para sempre. Prenderam todos os moradores de Jerusalém e grande parte dos habitantes de Judá, todos deportados para Babilónia sob a guarda dos vencedores, numa caminhada de mil quilómetros, envoltos em poeira, sol, humilhação e desastre.
Estas foram as noites escuras da rota da fé. No meio dessa escuridão, tanto Israel como nós pensamos em abandonar a Deus, porque nos sentimos abandonados por Ele. Mas, depois de algum tempo, purificados os nossos olhos de tanta poeira, aparecerá o Seu Rosto mais radiante que nunca. Provam-no os profetas Ezequiel e Isaías.
Exceto no período imperial do reinado David-Salomão, a vida de Israel é uma insignificante história da Liga das Doze Tribos, país invadido por ondas sucessivas de egípcios, assírios, babilónios, macedónios e romanos. Era para não confiar mais no seu Deus, ou pensar que o seu Deus era “pouca coisa”. Entretanto, por esse caminho de desenganos e escuridão, Deus foi levando Israel dos sonhos de grandeza terrestre para a verdadeira grandeza espiritual, até ao clarão da fé no Deus verdadeiro.
Para os que se esforçam por viver a fé total em Deus, é comovedora e impressionante a crise que sofreu o profeta Elias na sua peregrinação para o monte Horeb.
Elias era um profeta passado pelo fogo nas lutas com Deus, temperado como uma fera na torrente de Carit, onde só comia meio pão levado pelo corvo e bebia da água da torrente. Enfrentara reis, desmascarara poderosos, confundira e exterminara os adoradores de Baal no vale de Cison. De um homem com tal têmpera e fortaleza não se esperaria um desfalecimento; entretanto, existiu, e grande. Soube a rainha Jezabel que Elias havia executado os sacerdotes de Baal e enviou um mensageiro para anunciar ao profeta que no dia seguinte ele também seria passado pela espada. Jezabel tinha introduzido em Israel o culto a deuses estrangeiros.
Recebido o aviso, o profeta Elias foge em marcha forçada para o monte Horeb, símbolo da ascensão da alma, pelo caminho de fé, até Deus.
“Elias teve medo, e partiu para salvar a sua vida. Chegando a Bersabeia, em Judá, deixou ali o seu servo, e andou pelo deserto um dia de caminho. Sentou-se debaixo de um junípero (zimbro) e desejou a morte:
-  Basta, Senhor, disse ele; tirai-me a vida, porque não sou melhor do que meus pais.
Deitou-se por terra e adormeceu à sombra do junipero. Mas eis que um anjo tocou-o, dizendo:
-  Levanta-te e come.
Olhou e viu junto à sua cabeça um pão cozido debaixo da cinza e um vaso de água. Comeu, bebeu e tornou a dormir. Veio o anjo do Senhor uma segunda vez, tocou-o e disse:
- Levanta-te e come, porque tens um longo caminho a percorrer” (Rs. 19:3-7)
É surpreendente essa profunda depressão do profeta. As suas palavras lembram as de Jesus: “A minha alma está numa tristeza mortal” (Mt. 26:38; Mc. l4:34). Para os que levam Deus a sério e vivem na Sua presença e proximidade, essas depressões têm características de verdadeira agonia.
Todos, com mais ou menos frequência, com maior ou menor intensidade, sofrem esses processos de purificação que, fundamentalmente, são ondas de escuridão, nuvens que ocultam a Deus, são como uma cobertura de cem atmosferas oprimindo a alma. Se Deus nos retirasse a Sua mão, morreríamos.
3. O SILÊNCIO DE DEUS
Neste viver dia após dia na busca do Senhor, o que mais desconcerta os peregrinos da fé é o silêncio de Deus. “Deus é aquele que está sempre calado desde o princípio do mundo: aí está o fulcro da tragédia”.
Onde te escondeste
Estes olhos foram estruturados para a posse, isto é, para a evidência. Quando acabam por dominar, de modo distinto e possessivo, esse mundo de perspetivas, figuras, cores e dimensões, os olhos ficam satisfeitos: realizaram o seu objetivo, atingiram a evidência.
Estes ouvidos estão destinados, pela sua própria dinâmica interna, a apreender o mundo dos sons, das harmonias e das vozes. Quando conseguem o seu objetivo, ficam tranquilos, sentem-se realizados.
E assim por diante, a estrutura humana é constituída por várias potências: intelectiva, intuitiva, visual, auditiva, sexual, afetiva, neurovegetativa, endócrina... Cada potência tem os seus mecanismos de funcionamento e o seu objetivo. Alcançado este, as potências descansam. Até lá estão sempre inquietas. Em resumo, todas as potências do homem e o próprio homem foram estruturados para a evidência (posse).
Mas aqui é que está o mistério: o homem põe em marcha todos os mecanismos e uma a uma, todas as potências atingem o seu objetivo, todas ficam satisfeitas. E, todavia, o homem continua insatisfeito. Que quer isso dizer? Que o homem é outra coisa e mais do que a soma de todas as potências e que o elemento especificamente constitutivo do homem é outra potência enterrada, ou melhor, uma superpotência subjacente às demais e que as sustém.
Eu explico-me. Nascido dum sonho do Eterno, o homem não só é portador de valores eternos como ele próprio é um poço infinito porque foi sonhado e formado por uma medida infinita. Um poço assim jamais poderá ser enchido por criaturas finitas. Só um infinito o poderá encher até cima.
Sendo como é fotografia do invisível e ressonância do silencioso, o homem possui nas suas ancestralidades mais primitivas forças de profundidade que, inquietas e inquietantes, emergem, suspiram e aspiram, em perpétuo movimento, pelo centro de gravidade em que poderão ajustar-se e descansar, na esperança de “alcançar a caça”.
Cada ato de fé e de oração profunda é uma tentativa de posse. Dá-se o seguinte: essas forças de profundidade são postas em funcionamento mediante os mecanismos de fé. Isto é, o crente, qual cápsula espacial, montada em poderoso foguetão, que são as tais forças, vai-se aproximando do seu universo para possuí-lo e descansar. E, em determinado momento da oração, ao chegar já ao umbral de Deus, quando o crente tinha a impressão de ter o seu objetivo ao alcance da mão, Deus desvanece-se como em sonho, converte-se em ausência e silêncio.
E o crente fica sempre com um ressaibo de frustração. Essa subtil deceção deixada pelo encontro com Deus é intrinsecamente inerente ao acto de fé. Dessa combinação entre a natureza do homem e a de Deus nasce o silêncio de Deus: nascidos para a posse dum objetivo infinito e encontrando-se este para além do tempo, o nosso caminhar no tempo tem necessariamente de ser ausência e silêncio.
A vida de fé é simultaneamente uma aventura e uma desventura. Sabemos que à palavra Deus corresponde um Conteúdo. Mas, enquanto vamos a caminho, nunca tere­mos a evidência da sua posse vital ou do seu domínio intelectual. O Conteúdo estará sempre em silêncio, coberto com o véu do tempo. A Eternidade consistirá em correr este véu. Entretanto somos peregrinos porque O buscamos sem nunca O encontrarmos.
A vivência da fé, a vida com Deus é isso: um êxodo, um contínuo “correr chamando por Ti”. E aqui começa a eterna odisseia daqueles que buscam a Deus: a história pesada e monótona, capaz de acabar com qualquer resistência: em cada instante, em cada tentativa de oração, quando parecia que essa «figura» de Deus estava ao alcance da mão, já “Te tinhas ido”: o Senhor envolve-se no manto do silêncio e fica escondido. Parece um Rosto perpetuamente fugitivo e inacessível: como que aparece e desaparece, como que se aproxima ou se afasta, como que se concretiza ou desvanece.
O cristianismo foi seduzido pela tentação e deixou-se levar pela debilidade. Deus cala-se, não diz nem uma palavra de reprovação. Suponhamos o caso contrário: com generoso esforço supera a tentação. Deus fica igualmente calado, nem uma palavra de aprovação.
Passaste a noite inteira de vigília diante do Santíssimo. Além do facto de só tu teres falado durante a noite ficando o interlocutor calado, quando, ao amanhecer, deixares o santuário, cansado e cheio de sono, não ouvirás nem uma palavra amável de gratidão ou cortesia. O Outro esteve calado toda a noite e calado se mantém na despedida.
Se fores até ao jardim verás que as flores falam, falam os pássaros, falam as estrelas. Só Deus está calado. Dizem que as criaturas falam de Deus, mas Deus permanece calado. Tudo no universo é uma imensa e profunda evocação do mistério, mas o mistério desvanece-se no silêncio.
Subitamente a estrela desaparece da vista dos reis magos e eles ficam perdidos na mais completa desorientação.
A última vitória
O certo é que, de repente, todas as luzes se apagaram no céu de Jesus, como quando se dá um eclipse total. A desolação estendeu as suas asas negras sobre o páramo (firmamento) Infinito. À Sua volta, dum extremo ao outro do mundo (nada se via, nada se ouvia, ninguém falava. A ausência, o vazio, a confusão, o silêncio e a obscuridade abateram-se subitamente sobre a alma de Jesus quais feras Implacáveis.
Era o juízo do Justo. Os injustos julgaram-No injustamente e condenaram-No. Era normal. No momento oportuno o Pai havia de estar ao lado do Seu Filho, Inclinando a balança a Seu favor. Mas, chegada a hora decisiva, ninguém esteve do lado do Filho.
Como em todo o pleito, restava-lhe sempre, em ultima instância, o recurso de apelar para o Pai. Mas tudo indicava que o Pai tinha abandonado a causa do Filho.
Sobre os abismos infinitos o pobre Jesus vogava como náufrago perdido. A Seus pés, nada. Sobre a Sua cabeça, nada. “Meu Pai, porque me abandonaste?” (Mt. 27:46). Era o silêncio de Deus que lhe esmagava a alma com a pressão de cinquenta atmosferas.
No entanto, tudo isso foi a sensação. Mas a fé não é sentir, é saber.
Nunca Jesus foi tão grande como nos últimos passos da Sua agonia. Abriu os olhos. Abanou a cabeça como quem acorda e afasta um maldito pesadelo. Rapidamente se sobrepôs ao mau momento. A consciência da Sua identidade emergiu das brumas do “delirium” e tomou posse de toda a Sua esfera vital. E foi já com serenidade que travou o último combate, o combate da certeza contra a evidência, do saber contra o sentir. E do último combate nasceu a última vitória.
Sem o dizer, falou assim: Pai querido, não te sinto, não te vejo. As minhas sensações interiores dizem-me que estás longe, que te transformaste em vapor de água, em sombra fugidia, em distância sideral, em vazio sideral, que sei eu, em nada.
No entanto, contra todas estas impressões, eu sei que estás aqui, agora, comigo e “nas Tuas mãos entrego a minha vida” (Lc. 23:46). Em plena obscuridade deu Jesus o salto mortal num abismo profundíssimo, certo de que, lá no fundo, O esperava o Pai de braços abertos. Foi um final glorioso. O Pai não O preservara da morte, mas depressa O libertaria das suas garras. 

quarta-feira, 23 de maio de 2012

A Liberdade de Deus e o livre arbítrio dos homens


O livre arbítrio do homem é uma premissa evidente por si mesma, que não necessita de demonstração do cristão. Toda a moral, quer sob a Lei, quer sob o Evangelho, o responsabiliza e o considera capaz de considerar os motivos, pesar as alternativas, calcular os pontos necessários para os atingir. Esta verdade elementar é de facto fundamental em nossa experiência e assim agimos a cada momento. 
Entre as verdades reveladas, frequentemente aparecem gémeas. Andam aos pares. Assim a liberdade de Deus é uma verdade tão axiomática como o livre arbítrio dos homens, é infinitamente maior em alcance, santidade e valor, e no horizonte de seu panorama são vistas, em suas verdadeiras proporções e forças divinas, humanas, angélicas, demoníacas, e cósmicas. A liberdade de Deus não pode ser um elemento oculto, suprimido ou nulo no pensamento cristão. Sem este facto, nossas mentes ficam sem a luz e a força da eternidade, do invisível, da criação, da providência, da redenção, do juízo, da revelação, e dos atributos de Pai, Filho e Espírito Santo, como fatores na vida e no pensamento.
Nosso Deus não é Deus de palanque, mero espectador do curso do universo. Sua imanência em tudo, e sua transcendência à parte de tudo e sobre tudo, como o “Todo-Poderoso”, são da essência da fé, uma vez entregue aos santos, revelada em toda a Escritura. Deus, pois, goza de liberdade em seu universo. Os nomes bíblicos desta verdade são as doutrinas de predestinação, eleição, chamada eficaz, graça, providência, soberania divina, e doutrinas congéneres em toda a esfera de revelação. Todos esses atos correspondem, em Deus, a decisões tomadas por nós, no exercício de nossa liberdade, todos os dias de nossa vida, não neguemos, pois, a Deus a liberdade que gozamos e usamos e consideramos indispensável ao gozo de personalidade. Porquanto a personalidade é a natureza que é comum a nós e a Deus, a liberdade de escolha é da sua essência vital.
Nem a nossa liberdade nem a de Deus existe em absoluto. Quando Deus criou o universo, encheu-o de bilhões de seres responsáveis, tolerou sua queda em pecado e rebelião numa vasta escala, ainda empenhou os recursos divinos da Trindade na redenção, e entregou a empresa de evangelizar os pecadores aos esforços vagarosos e imperfeitos de outros pecadores, salvos pela graça, Ele inevitavelmente pôs pesados limites á liberdade divina. Há, pois, vários sentidos em que a liberdade divina é limitada. Deus não pode fazer aquilo que seja contrário ao seu caráter, nem o inerentemente contraditório ou impossível. Também havendo cedido a responsabilidade por um prazo, ou pela imortalidade de seres criados à sua imagem, ele não pode agir senão dentro de suas próprias alianças, pactos ou concertos que definem seus planos, promessas, e maneiras garantidas de agir.
Tudo quanto seja condicional, nas relações entre Deus e outras personalidades responsáveis e dotadas de livre arbítrio, constitui limite à liberdade divina. Outrossim, enquanto existe o estado atual da matéria, Deus se conforma com suas próprias “leis da natureza”, por Ele estabelecidas, as quais são apenas seus “hábitos de ação” providencial nessa esfera. Mas Ele não está preso numa gaiola de leis da sua confecção. Antes possui sempre os recursos infinitos da personalidade divina para introduzir, á sua vontade, fatores por nós desconhecidos que também podem agir no regime dessas leis, por exemplo, em responder ás orações do seu povo, em salvar, guardar e orientar o crente em Cristo Jesus, em toda aquela esfera da providência divinas que faz com que todas as coisas cooperem para o bem daqueles que são chamados segundo o seu propósito, e em manter o universo em sua quilha, seguro no seu rumo dos séculos, a despeito das maquinações de demónios e homens maus, em marcha rítmica ao dia do juízo final e à ordem eterna das coisas. Em todo o seu domínio sobre essa complexa unidade de seres responsáveis, Deus é incapaz de uma só injustiça, falta de amor positivo e agressivo, ou arbitrariedade, em todo o exercício multi-secular desta liberdade divina, assim voluntariamente limitada, mas soberana e eficaz.
    É igualmente importante, para reter e manter em simetria e coerência a verdade evangélica, que reconheçamos os vastos limites da liberdade humana. É limitada pela existência de Deus, pela queda da raça pela atividade hostil de outra raça decaída, os demónios que agem sob Satanás, o deus deste mundo, e pelos direitos de milhões de nossos semelhantes humanos, que existem como sardinhas em lata na terra, na vasta confusão que o pecado operou e desenvolve a cada passo. Forçosamente, nossa liberdade existe nessa complexa responsabilidade multiforme, ajuntando-se a cada instante com outros seres do mundo visível e invisível. Em todas estas relações sem conta, ela respeita os direitos alheios ou sofre as consequências. E as consequências ou aumentam as barreiras em nosso caminho de vontade própria ou salientam amargamente para nós que tais barreiras às vezes têm por cima arame farpado para ferir o transgressor, no sentido de consequências das próprias leis da natureza, física e mentais e sociais, que nossa própria consciência ajuizadamente apoia.
A moral, pois, a salvação, a religião, o fruto do Espírito, a ética, a sociologia, a vida económica, a política, a autoridade do Estado em lei municipais, estaduais, nacionais e internacionais, e nas emergências de guerra ou calamidade, e todas as organizações voluntárias e domésticas impõem restrições em nossa liberdade pessoal. E quanto mais adiantada a civilização, tanto mais complexa a responsabilidade limitada, e mais exigente ainda é o exercício do livre arbítrio.
Ora, a cada passo o nosso próximo nos lembra das restrições da nossa liberdade, dizendo-nos em solene advertência: “A tua liberdade termina no ponto onde começa o meu nariz!” E às vezes seu nariz está tão perto, e diretamente no rumo aonde queremos seguir. E nós nos sentimos nervosos, medrosos, muito prudentes ao chegarmos bem perto desse término. Só com muita cortesia, prévio aviso, e inegável necessidade é que fica de mútuo acordo que alguém toque no nariz alheio, como por exemplo, quando o dentista é solicitado a arrancar um dente que nos dói, embora seja necessário tomar liberdades com o nosso nariz e boca. Todavia, podemos recusar os bons serviços do dentista a ainda manter a inviolabilidade da ponta do nosso nariz. Contudo, sempre achei bom sacrificar um pouco a liberdade e o respeito próprio e me escravizar na cadeira do dentista, a fim de gozar aquela liberdade maior que é o alívio da dor de dente. Assim, no pleno exercício do meu livre arbítrio, caminhei submisso, tristonho, mas reluto, para o gabinete da tortura. Há sacrifícios voluntários da liberdade que o próprio livre arbítrio impõem e exige, e paga o preço para obter. Contudo somos nós que decidimos a questão. Fica intacta nossa escolha de motivos e meios.
Muito mais séria barreira e limitação da liberdade humana é feita pelo pecado, em todos os seus aspectos pessoais, coletivos, raciais, cósmicos e super-humanos. “Em verdade, em verdade, vos digo que todo aquele que comete pecado é servo (escravo) do pecado” (Jo. 8:34). Assim Jesus afirmou. Um escravo, porém tem livre arbítrio, embora a sua liberdade seja pouca. Há regiões íntimas da personalidade onde ele pode ser livre e superior. A vítima do alcoolismo, por exemplo, tem toda a liberdade de não beber. Não há lei divina ou humana que exija que ele beba. Nem Deus nem os homens de bem apoiam essa crescente escravatura a que o bêbado voluntariamente se entregou, e até seus tentadores chegam ao ponto em que já não têm prazer na sua companhia no bar ou clube. É livre, pois, para não beber, não é? É livre, sim, mas impotente, incapaz de exercer seu livre arbítrio. Já não existe nele a força para resistir ao poder da tentação. Quem se cobre de grilhões não é livre. Há, de facto, tantas limitações à liberdade humana quantos aspectos há ao pecado na vida do homem, pessoal, coletiva, racial e cosmicamente. A suposição popular ou filosófica de existir um ser criado e decaído que seja absolutamente livre e totalmente capaz, é hipótese admissível somente num asilo de doidos. Nunca houve um pecado que não acrescentasse mais grilhões ao escravo do mal e da depravação. A impotência moral e espiritual do pecador, pois, embora não seja total, no sentido de paralisar por completo todos os poderes da vontade humana, é fato racial e universalmente individual, com a única excepção de Jesus Cristo, e é total no sentido de afetar todo o nosso ser nas suas influências. Assim a depravação humana é total, mas não máxima; e este facto diminui a capacidade humana sem lhe diminuir a responsabilidade, no exercício do livre árbitro.
Nosso meio ambiente filosófico e religioso é quase totalmente hostil a qualquer doutrina real de Deus, e especialmente da liberdade de Deus. O Deus vivo e verdadeiro ainda é um deus desconhecido aos nossos soberbos atenienses do Areópago dos intelectuais. O positivismo renascente não admite a verdade, portanto quer desviar até os crentes para um estéril humanismo anti-teológico, feroz contra toda a doutrina, sem entre a verdadeira e a falsa ou entre as tradições dos homens e a revelação divina nas Escrituras e em Jesus Cristo. As várias ideologias prevalecentes ambicionam limitar nosso horizonte a esta vida.
O unionismo ecuménico quer reduzir todas as doutrinas nominalmente cristãs ao mesmo nível, por mais contraditórias que sejam. Num meio tão hostil, é preciso ser crente de coragem moral, decisão de caráter, fibra, intelectual, resistente e real independência de juízo para crer, apoiar e testemunhar as verdades que Deus tenha revelado na sua Palavra, mormente a verdade do Deus livre e sempre ativo na vida. Neste terreno, porém vale mais um Paulo do que dez mil Gamalieis, e um Spurgeon significa mais para o mundo contemporâneo religioso do que um milhões de Darwins. Teremos ensejo de examinar e decidir se realmente cremos num Deus de palanque, nulo, irresponsável, mera fábula de velhas, ou se o Deus da Bíblia é o nosso Deus, adorado, acatado, amado, obedecido e proclamado no seu evangelho para todos.
Três doutrinas que nos falam da liberdade de Deus são sua predestinação, sua eleição e sua chamada eficaz. Há pouco no Novo Testamento sobre a doutrina da predestinação, pois a palavra só se emprega em Atos 4:28; Romanos 8:29, 30; 1 Coríntios 2:7; e Efésios 1:5,11. O estudante da Bíblia, porém, se ler estas Escrituras e lhe der o seu valor evidente, há-de sentir quão profunda é esta verdade e quão extenso o seu alcance. O leitor é convidado a ler, meditar estudar e assimilar estas verdades, sem rodeios, sem buscar anular seu sentido e valor pela lógica de sofismas incrédulos. Verá na sua pujança e pureza a doutrina da liberdade de Deus, não precisa gastar tempo procurando harmonizar isto com a liberdade humana, pois não há conflito entre as múltiplas liberdades de personalidade. Nunca entenderemos isto, mas podemos crer, pois, ou Deus é livre, ou não há Deus. Sua liberdade de fazer planos, escolher meios e pessoas para a execução destes planos e orientar tudo de acordo é exatamente a natureza da liberdade que nós verificamos existir imperfeitamente em nós mesmos. Deus é pelo menos tão livre como suas criaturas.
A doutrina da eleição e os termos congéneres se encontram em Romanos 9:11; 11:5, 7; 1 Tessalonicenses 1:4; 2 Pedro 1:10; 1 Pedro 2:4, 6, 9; Tito 1:1; 2 Timóteo 2:10; Marcos 13:20, 22, 27; Mateus 20:16; 22:14; 24:24; João 15:16; 1 Coríntios 1:27; Efésios 1:4; Tiago 2:5. Esta eleição divina foi feita mesmo antes da nossa existência, na antiga eternidade (Ap. 17:8). Jesus fala de ovelhas suas que ainda não eram convertidas (Jo. 10:26-27), e a Paulo animou com a declaração de que Ele tinha muito povo em corinto (At. 18.10), quando os crentes ainda eram poucos e novos. É fútil dizer que Deus meramente escolheu aos que O tiverem escolhido, ou que faz sua escolha depois da escolha humana de salvação. Isto reduz o Deus da eternidade a um deus de palanque e nega a veracidade destas muitas Escrituras. Deus elege livremente, como nós O escolhemos em plena liberdade de O receber ou rejeitar. Onde há muitas vontades, muitos livremente escolhem, é fútil negar a Deus a liberdade de escolha que nós mesmos gozamos. Nós escolhemos pessoas, por exemplo, no casamento. Isto não ofende a ética: antes a ética o exige. Um rapaz que meramente escolhesse casar-se com uma classe, decidisse que sua esposa seria mulher, mas nunca fosse além, seria para sempre solteiro. É a escolha do indivíduo que resulta no casamento ou na salvação. No casamento ou na salvação há duas pessoas a decidir, duas escolhas, mas a escolha de Deus é pelo menos tão livre como a escolha do pecador a quem Ele estende a sua graça. Nem digamos que a eleição seja só para o serviço. Isto não evita nenhum problema de doutrina. Se Deus escolheu e capturou a Paulo, para ser o apóstolo dos gentios, e não escolheu Gamaliel para tão elevado lugar na história humana, o problema moral é o mesmo, em grau menor, que existe na escolha para a salvação. A escolha divina é para todos os fins da vontade de Deus. A definição da doutrina da eleição por Strong é: “O ato eterno de Deus, pelo qual, segundo o seu beneplácito soberano e não em consideração de mérito previsto, Ele escolhe certas pessoas do mundo de pendores, para serem os recipientes da graça especial de seu Espírito, de modo a se tornarem participantes voluntários da salvação de Cristo…” Assim a escolha divina e a fé humana são voluntárias. Não há perigo de negarmos o livre arbítrio do homem na salvação. Tenhamos pela fé ao menos igual apoio da liberdade de Deus em todas as escolhas relacionadas com a salvação, o serviço cristão e o progresso do reino de Deus até o seu triunfo final.
Strong também salienta duas doutrinas distintas das chamadas divinas que as Escrituras afirmam. Uma é a chamada universal do evangelho, como se vê em Isaías 45:22; 55:16; 65:12; João 12:22, etc. etc. A outra é a chamada eficaz do Espírito Santo no Coração que nos conduz sobrenaturalmente, para correspondermos à eleição divina e à sua chamada eficaz, unindo assim a escolha divina e a humana, mutuamente, na experiência da salvação. Esta doutrina da chamada especial e eficaz, gravada em nossos espíritos pelo Espírito de Deus, se encontra em Lucas 14:23; Romanos 1:7; 8.30; 11:29; 1 Coríntios 1:23, 24, 26; Filipenses 3:14; Efésios 1:18; 1 Tessalonicenses 2:12; 2 Tessalonicenses 2:14; 2 Timóteo 1:9; Hebreus 3:1; 2 Pedro 1:10. Strong define esta chamada eficaz como a operação poderosa do Espírito, levando o pecador a Cristo. Paulo contempla a majestosa unidade inquebrantável desta eterna salvação. As mesmas pessoas que ele previu como já glorificadas no céu, foram anteriormente predestinadas, eficazmente chamadas, justificadas e então glorificadas. E de todos os crentes Ele tem tanta certeza da sua salvação assim consumada que emprega até o tempo passado do verbo cinco vezes: “Dantes conheceu… (não era mera presciência, mas eleição, conhecendo-os como seus) predestinou… chamou… justificou… glorificou” (Rm. 8:29, 30). Os elos se estendem de eternidade a eternidade, e são todos atos divinos, decisões da livre vontade de Deus. Nunca ponhamos uma verdade em oposição a outra, nem consintamos que uma eclipse a outra. Acima de todas as liberdades, sem contradizer ou negar ou enfraquecer nenhuma delas, é a liberdade de Deus. Creiamos no Deus livre e real, cujo livre arbítrio é tão genuíno e independente como o nosso, e para cujos propósitos há os infinitos recursos de sua personalidade divina, “que faz todas as coisas segundo o conselho da sua vontade”.