O livre arbítrio do homem é uma premissa evidente por si mesma, que não
necessita de demonstração do cristão. Toda a moral, quer sob a Lei, quer sob o
Evangelho, o responsabiliza e o considera capaz de considerar os motivos, pesar
as alternativas, calcular os pontos necessários para os atingir. Esta verdade
elementar é de facto fundamental em nossa experiência e assim agimos a cada
momento.
Entre as verdades
reveladas, frequentemente aparecem gémeas. Andam aos pares. Assim a liberdade
de Deus é uma verdade tão axiomática como o livre arbítrio dos homens, é
infinitamente maior em alcance, santidade e valor, e no horizonte de seu
panorama são vistas, em suas verdadeiras proporções e forças divinas, humanas,
angélicas, demoníacas, e cósmicas. A liberdade de Deus não pode ser um elemento
oculto, suprimido ou nulo no pensamento cristão. Sem este facto, nossas mentes
ficam sem a luz e a força da eternidade, do invisível, da criação, da
providência, da redenção, do juízo, da revelação, e dos atributos de Pai, Filho
e Espírito Santo, como fatores na vida e no pensamento.
Nosso Deus não é
Deus de palanque, mero espectador do curso do universo. Sua imanência em tudo,
e sua transcendência à parte de tudo e sobre tudo, como o “Todo-Poderoso”, são
da essência da fé, uma vez entregue aos santos, revelada em toda a Escritura.
Deus, pois, goza de liberdade em seu universo. Os nomes bíblicos desta verdade
são as doutrinas de predestinação, eleição, chamada eficaz, graça, providência,
soberania divina, e doutrinas congéneres em toda a esfera de revelação. Todos
esses atos correspondem, em Deus, a decisões tomadas por nós, no exercício de
nossa liberdade, todos os dias de nossa vida, não neguemos, pois, a Deus a
liberdade que gozamos e usamos e consideramos indispensável ao gozo de
personalidade. Porquanto a personalidade é a natureza que é comum a nós e a Deus,
a liberdade de escolha é da sua essência vital.
Nem a nossa
liberdade nem a de Deus existe em absoluto. Quando Deus criou o universo,
encheu-o de bilhões de seres responsáveis, tolerou sua queda em pecado e
rebelião numa vasta escala, ainda empenhou os recursos divinos da Trindade na
redenção, e entregou a empresa de evangelizar os pecadores aos esforços
vagarosos e imperfeitos de outros pecadores, salvos pela graça, Ele
inevitavelmente pôs pesados limites á liberdade divina. Há, pois, vários
sentidos em que a liberdade divina é limitada. Deus não pode fazer aquilo que seja
contrário ao seu caráter, nem o inerentemente contraditório ou impossível.
Também havendo cedido a responsabilidade por um prazo, ou pela imortalidade de
seres criados à sua imagem, ele não pode agir senão dentro de suas próprias
alianças, pactos ou concertos que definem seus planos, promessas, e maneiras
garantidas de agir.
Tudo quanto seja
condicional, nas relações entre Deus e outras personalidades responsáveis e
dotadas de livre arbítrio, constitui limite à liberdade divina. Outrossim,
enquanto existe o estado atual da matéria, Deus se conforma com suas próprias
“leis da natureza”, por Ele estabelecidas, as quais são apenas seus “hábitos de
ação” providencial nessa esfera. Mas Ele não está preso numa gaiola de leis da
sua confecção. Antes possui sempre os recursos infinitos da personalidade
divina para introduzir, á sua vontade, fatores por nós desconhecidos que também
podem agir no regime dessas leis, por exemplo, em responder ás orações do seu
povo, em salvar, guardar e orientar o crente em Cristo Jesus, em toda aquela
esfera da providência divinas que faz com que todas as coisas cooperem para o
bem daqueles que são chamados segundo o seu propósito, e em manter o universo
em sua quilha, seguro no seu rumo dos séculos, a despeito das maquinações de demónios
e homens maus, em marcha rítmica ao dia do juízo final e à ordem eterna das
coisas. Em todo o seu domínio sobre essa complexa unidade de seres
responsáveis, Deus é incapaz de uma só injustiça, falta de amor positivo e
agressivo, ou arbitrariedade, em todo o exercício multi-secular desta liberdade
divina, assim voluntariamente limitada, mas soberana e eficaz.
É igualmente
importante, para reter e manter em simetria e coerência a verdade evangélica,
que reconheçamos os vastos limites da liberdade humana. É limitada pela
existência de Deus, pela queda da raça pela atividade hostil de outra raça
decaída, os demónios que agem sob Satanás, o deus deste mundo, e pelos direitos
de milhões de nossos semelhantes humanos, que existem como sardinhas em lata na
terra, na vasta confusão que o pecado operou e desenvolve a cada passo.
Forçosamente, nossa liberdade existe nessa complexa responsabilidade
multiforme, ajuntando-se a cada instante com outros seres do mundo visível e
invisível. Em todas estas relações sem conta, ela respeita os direitos alheios
ou sofre as consequências. E as consequências ou aumentam as barreiras em nosso
caminho de vontade própria ou salientam amargamente para nós que tais barreiras
às vezes têm por cima arame farpado para ferir o transgressor, no sentido de consequências
das próprias leis da natureza, física e mentais e sociais, que nossa própria
consciência ajuizadamente apoia.
A moral, pois, a
salvação, a religião, o fruto do Espírito, a ética, a sociologia, a vida económica,
a política, a autoridade do Estado em lei municipais, estaduais, nacionais e
internacionais, e nas emergências de guerra ou calamidade, e todas as
organizações voluntárias e domésticas impõem restrições em nossa liberdade
pessoal. E quanto mais adiantada a civilização, tanto mais complexa a
responsabilidade limitada, e mais exigente ainda é o exercício do livre
arbítrio.
Ora, a cada passo o
nosso próximo nos lembra das restrições da nossa liberdade, dizendo-nos em
solene advertência: “A tua liberdade
termina no ponto onde começa o meu nariz!” E às vezes seu nariz está tão
perto, e diretamente no rumo aonde queremos seguir. E nós nos sentimos
nervosos, medrosos, muito prudentes ao chegarmos bem perto desse término. Só
com muita cortesia, prévio aviso, e inegável necessidade é que fica de mútuo
acordo que alguém toque no nariz alheio, como por exemplo, quando o dentista é
solicitado a arrancar um dente que nos dói, embora seja necessário tomar
liberdades com o nosso nariz e boca. Todavia, podemos recusar os bons serviços
do dentista a ainda manter a inviolabilidade da ponta do nosso nariz. Contudo,
sempre achei bom sacrificar um pouco a liberdade e o respeito próprio e me
escravizar na cadeira do dentista, a fim de gozar aquela liberdade maior que é
o alívio da dor de dente. Assim, no pleno exercício do meu livre arbítrio,
caminhei submisso, tristonho, mas reluto, para o gabinete da tortura. Há
sacrifícios voluntários da liberdade que o próprio livre arbítrio impõem e
exige, e paga o preço para obter. Contudo somos nós que decidimos a questão.
Fica intacta nossa escolha de motivos e meios.
Muito mais séria
barreira e limitação da liberdade humana é feita pelo pecado, em todos os seus
aspectos pessoais, coletivos, raciais, cósmicos e super-humanos. “Em verdade, em verdade, vos digo que todo
aquele que comete pecado é servo (escravo) do pecado” (Jo. 8:34). Assim
Jesus afirmou. Um escravo, porém tem livre arbítrio, embora a sua liberdade
seja pouca. Há regiões íntimas da personalidade onde ele pode ser livre e
superior. A vítima do alcoolismo, por exemplo, tem toda a liberdade de não
beber. Não há lei divina ou humana que exija que ele beba. Nem Deus nem os
homens de bem apoiam essa crescente escravatura a que o bêbado voluntariamente
se entregou, e até seus tentadores chegam ao ponto em que já não têm prazer na
sua companhia no bar ou clube. É livre, pois, para não beber, não é? É livre,
sim, mas impotente, incapaz de exercer seu livre arbítrio. Já não existe nele a
força para resistir ao poder da tentação. Quem se cobre de grilhões não é
livre. Há, de facto, tantas limitações à liberdade humana quantos aspectos há
ao pecado na vida do homem, pessoal, coletiva, racial e cosmicamente. A
suposição popular ou filosófica de existir um ser criado e decaído que seja absolutamente
livre e totalmente capaz, é hipótese admissível somente num asilo de doidos.
Nunca houve um pecado que não acrescentasse mais grilhões ao escravo do mal e
da depravação. A impotência moral e espiritual do pecador, pois, embora não
seja total, no sentido de paralisar por completo todos os poderes da vontade
humana, é fato racial e universalmente individual, com a única excepção de
Jesus Cristo, e é total no sentido de afetar todo o nosso ser nas suas
influências. Assim a depravação humana é total, mas não máxima; e este facto
diminui a capacidade humana sem lhe diminuir a responsabilidade, no exercício
do livre árbitro.
Nosso meio ambiente
filosófico e religioso é quase totalmente hostil a qualquer doutrina real de
Deus, e especialmente da liberdade de Deus. O Deus vivo e verdadeiro ainda é um
deus desconhecido aos nossos soberbos atenienses do Areópago dos intelectuais.
O positivismo renascente não admite a verdade, portanto quer desviar até os
crentes para um estéril humanismo anti-teológico, feroz contra toda a doutrina,
sem entre a verdadeira e a falsa ou entre as tradições dos homens e a revelação
divina nas Escrituras e em Jesus Cristo. As várias ideologias prevalecentes
ambicionam limitar nosso horizonte a esta vida.
O unionismo
ecuménico quer reduzir todas as doutrinas nominalmente cristãs ao mesmo nível,
por mais contraditórias que sejam. Num meio tão hostil, é preciso ser crente de
coragem moral, decisão de caráter, fibra, intelectual, resistente e real
independência de juízo para crer, apoiar e testemunhar as verdades que Deus
tenha revelado na sua Palavra, mormente a verdade do Deus livre e sempre ativo
na vida. Neste terreno, porém vale mais um Paulo do que dez mil Gamalieis, e um
Spurgeon significa mais para o mundo contemporâneo religioso do que um milhões
de Darwins. Teremos ensejo de examinar e decidir se realmente cremos num Deus
de palanque, nulo, irresponsável, mera fábula de velhas, ou se o Deus da Bíblia
é o nosso Deus, adorado, acatado, amado, obedecido e proclamado no seu evangelho
para todos.
Três doutrinas que
nos falam da liberdade de Deus são sua predestinação, sua eleição e sua chamada
eficaz. Há pouco no Novo Testamento sobre a doutrina da predestinação, pois a
palavra só se emprega em Atos 4:28; Romanos 8:29, 30; 1 Coríntios 2:7; e
Efésios 1:5,11. O estudante da Bíblia, porém, se ler estas Escrituras e lhe der
o seu valor evidente, há-de sentir quão profunda é esta verdade e quão extenso
o seu alcance. O leitor é convidado a ler, meditar estudar e assimilar estas
verdades, sem rodeios, sem buscar anular seu sentido e valor pela lógica de
sofismas incrédulos. Verá na sua pujança e pureza a doutrina da liberdade de
Deus, não precisa gastar tempo procurando harmonizar isto com a liberdade
humana, pois não há conflito entre as múltiplas liberdades de personalidade.
Nunca entenderemos isto, mas podemos crer, pois, ou Deus é livre, ou não há
Deus. Sua liberdade de fazer planos, escolher meios e pessoas para a execução
destes planos e orientar tudo de acordo é exatamente a natureza da liberdade
que nós verificamos existir imperfeitamente em nós mesmos. Deus é pelo menos
tão livre como suas criaturas.
A doutrina da
eleição e os termos congéneres se encontram em Romanos 9:11; 11:5, 7; 1
Tessalonicenses 1:4; 2 Pedro 1:10; 1 Pedro 2:4, 6, 9; Tito 1:1; 2 Timóteo 2:10;
Marcos 13:20, 22, 27; Mateus 20:16; 22:14; 24:24; João 15:16; 1 Coríntios 1:27;
Efésios 1:4; Tiago 2:5. Esta eleição divina foi feita mesmo antes da nossa
existência, na antiga eternidade (Ap. 17:8). Jesus fala de ovelhas suas que
ainda não eram convertidas (Jo. 10:26-27), e a Paulo animou com a declaração de
que Ele tinha muito povo em corinto (At. 18.10), quando os crentes ainda eram
poucos e novos. É fútil dizer que Deus meramente escolheu aos que O tiverem
escolhido, ou que faz sua escolha depois da escolha humana de salvação. Isto
reduz o Deus da eternidade a um deus de palanque e nega a veracidade destas
muitas Escrituras. Deus elege livremente, como nós O escolhemos em plena
liberdade de O receber ou rejeitar. Onde há muitas vontades, muitos livremente
escolhem, é fútil negar a Deus a liberdade de escolha que nós mesmos gozamos.
Nós escolhemos pessoas, por exemplo, no casamento. Isto não ofende a ética:
antes a ética o exige. Um rapaz que meramente escolhesse casar-se com uma
classe, decidisse que sua esposa seria mulher, mas nunca fosse além, seria para
sempre solteiro. É a escolha do indivíduo que resulta no casamento ou na
salvação. No casamento ou na salvação há duas pessoas a decidir, duas escolhas,
mas a escolha de Deus é pelo menos tão livre como a escolha do pecador a quem
Ele estende a sua graça. Nem digamos que a eleição seja só para o serviço. Isto
não evita nenhum problema de doutrina. Se Deus escolheu e capturou a Paulo,
para ser o apóstolo dos gentios, e não escolheu Gamaliel para tão elevado lugar
na história humana, o problema moral é o mesmo, em grau menor, que existe na
escolha para a salvação. A escolha divina é para todos os fins da vontade de
Deus. A definição da doutrina da eleição por Strong é: “O ato eterno de Deus, pelo qual, segundo o seu beneplácito soberano e
não em consideração de mérito previsto, Ele escolhe certas pessoas do mundo de
pendores, para serem os recipientes da graça especial de seu Espírito, de modo
a se tornarem participantes voluntários da salvação de Cristo…” Assim a
escolha divina e a fé humana são voluntárias. Não há perigo de negarmos o livre
arbítrio do homem na salvação. Tenhamos pela fé ao menos igual apoio da
liberdade de Deus em todas as escolhas relacionadas com a salvação, o serviço
cristão e o progresso do reino de Deus até o seu triunfo final.
Strong também
salienta duas doutrinas distintas das chamadas divinas que as Escrituras
afirmam. Uma é a chamada universal do evangelho, como se vê em Isaías 45:22; 55:16;
65:12; João 12:22, etc. etc. A outra é a chamada eficaz do Espírito Santo no
Coração que nos conduz sobrenaturalmente, para correspondermos à eleição divina
e à sua chamada eficaz, unindo assim a escolha divina e a humana, mutuamente,
na experiência da salvação. Esta doutrina da chamada especial e eficaz, gravada
em nossos espíritos pelo Espírito de Deus, se encontra em Lucas 14:23; Romanos
1:7; 8.30; 11:29; 1 Coríntios 1:23, 24, 26; Filipenses 3:14; Efésios 1:18; 1
Tessalonicenses 2:12; 2 Tessalonicenses 2:14; 2 Timóteo 1:9; Hebreus 3:1; 2
Pedro 1:10. Strong define esta chamada eficaz como a operação poderosa do
Espírito, levando o pecador a Cristo. Paulo contempla a majestosa unidade
inquebrantável desta eterna salvação. As mesmas pessoas que ele previu como já
glorificadas no céu, foram anteriormente predestinadas, eficazmente chamadas,
justificadas e então glorificadas. E de todos os crentes Ele tem tanta certeza
da sua salvação assim consumada que emprega até o tempo passado do verbo cinco
vezes: “Dantes conheceu… (não era mera
presciência, mas eleição, conhecendo-os como seus) predestinou… chamou…
justificou… glorificou” (Rm. 8:29, 30). Os elos se estendem de eternidade a
eternidade, e são todos atos divinos, decisões da livre vontade de Deus. Nunca
ponhamos uma verdade em oposição a outra, nem consintamos que uma eclipse a outra.
Acima de todas as liberdades, sem contradizer ou negar ou enfraquecer nenhuma
delas, é a liberdade de Deus. Creiamos no Deus livre e real, cujo livre
arbítrio é tão genuíno e independente como o nosso, e para cujos propósitos há
os infinitos recursos de sua personalidade divina, “que faz todas as coisas segundo o conselho da sua vontade”.
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